O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica - Uma História de Sucesso que Correu Mal?
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d Securit an y e Se Pe ac ries FES Colin Darch Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica
SOBRE O AUTOR O Dr. Colin Darch já se reformou, mas mantém posições honorárias de pesquisa no Human Sciences Research Council, Cape Town, na Democratic Governance and Rights Unit, da Universidade de Cape Town, e no Centre for African Studies, também na Universidade de Cape Town. Ao longo de uma carreira de quarenta anos, trabalhou em universidades e centros de investigação na Etiópia, Tanzânia, Moçambique, Zimbabwe e Brasil. Entre 1979 e 1987, trabalhou no Centro de Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane. Depois de se reformar, em 2016, foi Professor Visitante na Universidade Federal de Pernambuco, no Brasil, e, em 2017, ensinou na Universidade Pedagógica em Lhanguene, Maputo. É autor de vários trabalhos sobre História de África e de Moçambique, incluindo, mais recentemente, O Continente demasiado grande: reflexões sobre temáticas africanas contemporâneas (Recife: UFPE, 2016), o Historical Dictionary of Mozambique (Scarecrow Press, a publicar em breve), e, com David Hedges, Samora Machel: retórica política e independência em Moçambique (Salvador: EDUFBA. No prelo). Arte da Capa Um comício da RENAMO no norte de Moçambique, 1994, Foto de Michel Cahen Tradução: António Roxo Leão Aviso legal Publicado por Friedrich-Ebert-Stiftung Moçambique Avenida Tomás Nduda 1313, Maputo, Mozambique Tel.: +258-21-491231, Fax: +258-21-490286 Email: info@fes-mozambique.org ©Friedrich-Ebert-Stiftung 2018 ISBN 978-989-20-8380-3 “O uso comercial de todos os meios de comunicação social publicadas pela Friedrich Ebert Stiftung (FES) não é permitido sem o consentimento por escrito da FES. As opiniões expressas nesta publicação não são necessariamente os da Friedrich Ebert Stiftung. ”
Colin Darch Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica
CONTENTS INTRODUÇÃO 5 O CONTEXTO HISTÓRICO 6 Mudanças Económicas 7 Adversários Políticos 8 O Acordo Geral de Paz 9 Conflito Renovado 10 CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS DO CONFLITO E DA PAZ EM MOÇAMBIQUE 12 “Reenquadramento” ideológico na Transição para a Independência 12 A Natureza do Conflito com a RENAMO, 1976-1992 14 O AGP como Tentativa de Estabilização e Reconciliação 16 Desarmamento Incompleto e Integração dos Militares 17 A Descentralização do Poder Político e da Administração 19 A “Maldição dos Recursos” e a Expectativa de Lucros Fabulosos 21 A “Parlamentarização” é Desejável ou Possível? 22 CONCLUSÃO: O REGRESSO AO CONFLITO E AS SUAS LIÇÕES 24 REFERÊNCIAS 27
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica INTRODUÇÃO A degradação da imagem do país, especialmente nos últimos cerca de cinco anos, foi, em grande A opinião sobre os dezasseis anos devastadores parte, consequência de dois factores. São eles, de conflito armado em Moçambique e o quarto primeiro, o regresso dramático ao conflito de de século de paz que se seguiu, tem mudado baixa intensidade com a RENAMO, o principal substancialmente ao longo do tempo. A partido da oposição, entre 2013 e 2016, quando guerra entre o Governo da Frelimo e o grupo entrou em vigor um cessar fogo. O segundo rebelde da RENAMO (Resistência Nacional factor foi, em Abril de 2016, a revelação de Moçambicana)1 começou em 1976, pouco que em 2013-2014 tinham sido negociados depois da independência, e terminou em 1992, empréstimos maciços secretos por elementos com a assinatura do Acordo Geral de Paz das estruturas da segurança do estado e do (AGP). Em meados dos anos 90, Moçambique partido no poder, em completo desrespeito era generalizadamente visto como um exemplo pelas normas judiciais e democráticas em vigor bem-sucedido de estabilização económica (a chamada “dívida secreta”). e social numa sociedade pós-conflito (e.g. FCO 1999; Manning 2002; Phiri 2012). Mas, Em Maio de 2016, assim que se descobriu a na segunda década do século vinte e um, o existência da dívida secreta, a comunidade país deixou de ocupar a sua anterior posição internacional, dirigida pelo Fundo Monetário de “farol de esperança”, e de uma história Internacional (FMI), cortou uma parte rara de sucesso demonstrando a eficácia de significativa da sua assistência económica. modelos de reconciliação pós conflito que Na altura em que este artigo foi escrito, com ajuda a produzir um crescimento económico as relações entre a comunidade doadora sustentável. O processo de paz moçambicano e o Governo num impasse, o crescimento e a sua expressão jurídica no AGP, está a ser económico continua lento e o FMI vai mantendo questionado de novo, e a questão – impensável as suas exigências de divulgação total da há dez anos – que está a ser colocada é “estará informação relativa a como foi negociada a Paz a falhar em Moçambique”? 2 a dívida secreta, paralelamente a cortes na despesa do Governo e a uma restruturação 1 A RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) é um significativa das empresas estatais ineficientes híbrido político-militar. Teve origem nos anos 1970’, existentes. como rebelião armada antimarxista contra a agenda da Frelimo de transformação socialista radical. A maior parte dos analistas acreditam a organização foi Neste contexto, este artigo tem como propósito montada com o patrocínio de vários pequenos grupos analisar as raízes estruturais da actual situação de dissidentes, e, depois de 1980, continuou a lutar e identificar os factores chave da história com o apoio do regime de apartheid sul-africano. Depois do acordo de paz de 1992, exigiu-se à RENAMO de Moçambique pós-independência que que se transformasse em partido, mas esta não foi contribuíram e, talvez, que determinaram a totalmente desarmada. Na verdade, ao mesmo tempo actual crise político-económica continuada e que funcionava como oposição parlamentar, mantinha desestabilizadora. uma pequena, mas significativa, ala militar. 2 O surgimento de uma sublevação islâmica, denominada Ansar al-Suna em Cabo Delgado, começando com um ataque a Mocímboa da Praia em Outubro de 2017, pobreza e a desigualdade pelo fenómeno, este está também constitui uma clara ameaça à paz. O governo ainda insuficientemente documentado para que respondeu com violência considerável. No entanto, possa ser analisado pormenorizadamente neste artigo embora algumas figuras locais tenham culpado a (Fabricius 2017; Hanlon 2018a). 5
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica O CONTEXTO HISTÓRICO o movimento nacionalista FRELIMO3 viria a lançar a luta armada de libertação nacional que A história de conflito armado e instabilidade levaria à independência em 1975, ao fim de violenta em Moçambique remonta a um dez anos de luta. Passados dois ou três anos, passado distante e faz parte da herança do o conflito armado foi renovado mais uma vez, colonialismo. Durante a maior parte do período quando o movimento RENAMO lançou a sua colonial, de um modo geral, Portugal não rebelião contra o novo governo, uma rebelião teve força suficiente para impor qualquer tipo que durou até 1992. Na sua primeira fase, o de poder unitário e organizado sobre todo o conflito foi uma guerra de desestabilização território do que viria a ser Moçambique. Na contra as políticas “comunistas” do governo verdade, até ao início do século vinte, o Estado da Frelimo, ostensivamente apoiada pelo colonial esteve numa constante competição, estrangeiro, com a RENAMO a praticar, como normalmente armada, com várias entidades estratégia primária, uma campanha de terror políticas locais africanas poderosas. Em finais contra as populações rurais, paralelamente do século dezanove, a fragilidade de Portugal à sabotagem de infra-estruturas. Ao longo levou à cessão de vastas áreas do centro e norte do tempo, porém, os rebeldes começaram a a companhias concessionárias estrangeiras, explorar a insatisfação local relativa a políticas chamadas Companhias Majestáticas (a do governo como o reassentamento forçado Companhia do Niassa e a Companhia de em “aldeias comunais” e a construir uma base Moçambique). As áreas sob controle destas de apoio popular, principalmente nas províncias empresas comerciais eram notoriamente do centro do país. Em finais dos anos oitenta, desprovidas de lei, já que o principal interesse tinha ficado claro para ambas as partes que dos investidores era a exploração de recursos a guerra não seria vencida militarmente, e o comerciais, não a imposição da lei e ordem para governo e os rebeldes sentaram-se à mesa para além do que fosse minimamente necessário. A negociarem um fim mediado para a guerra. chamada “resistência primária” da população Quando o Acordo Geral de Paz acabou por africana (Ranger 1968a, 1968b) à luta ser assinado, em fins de 1992, foi finalmente prolongada de Portugal para impor a sua lei estabelecido um sistema multipartidário e só terminou em 1916-1918, quando a revolta abandonada a planificação centralizada da do Báruè, na província central de Moçambique economia. foi final e brutalmente suprimida pelo exército português (Isaacman e Isaacman 1976: 156- 185). A campanha portuguesa no Báruè foi a 3 A palavra “Frelimo” – que já não é considerada uma última de uma série de ditas “campanhas de abreviatura – tem origem no acrónimo FRELIMO pacificação”, em finais de XIX, princípios de XX, (Frente de Libertação de Moçambique). Trata-se de que finalmente impuseram o domínio colonial uma ampla frente constituída na Tanzânia em 1962, com o objectivo de obter a Independência. A Frente em todo o território. manteve uma guerra de dez anos contra o poder colonial, de 1964 a 1974, e a independência foi Mas Moçambique não permaneceu “pacificado” finalmente alcançada em 1975. Em 1977, no seu por muito tempo, mesmo contando as décadas Terceiro Congresso, o movimento passou a ser um partido de vanguarda marxista-leninista, mas, mais de opressão colonial como apenas uma paz tarde, abandonou esta orientação ideológica sob negativa: passados menos de cinquenta anos, pressão política e económica. O Partido Frelimo é dominante em Moçambique e venceu todas as eleições gerais multipartidárias desde 1994. 6
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica Como podemos ver da descrição acima, os metrópole colonial. O sistema, envolvendo períodos de paz foram raros numa perspectiva centenas de milhar de camponeses, expandiu- histórica e longe de serem o estado normal das se durante o período do regime de Salazar, até coisas em Moçambique. ao início dos anos 1960’. Mesmo depois do fim da guerra em 1992, No entanto, no fim do período colonial, em e já com o AGP em vigor, continuaram a ter meados do século vinte, o carácter da economia lugar casos esporádicos de violência política interna da colónia transformou-se no sentido (motins derivados do aumento dos preços dos da substituição de importações, à medida que alimentos, assassinatos políticos). Apesar de o crescimento da população colona alimentava tudo, durante cerca de vinte anos, o país parecia a procura de bens de consumo. Na altura da ter alcançado uma forma viável, por mais que independência em 1975, essa economia ficou à imperfeita, de resolução pacífica. Infelizmente, beira do colapso, dada a fuga generalizada dos as condições materiais e políticas para novos colonos com competência técnica, juntamente conflitos continuavam a existir – o partido da com actos de sabotagem cometidos pelos oposição, a RENAMO, ainda controlava um colonos que partiam, e a já visível crise do pequeno exército, uma quantidade inestimada capitalismo colonial. Nos primeiros nove anos de armas e munições que nunca chegaram de independência, as políticas económicas a ser entregues, a estrutura administrativa socialistas de Moçambique focaram-se no contar continuava altamente centralizada num sistema com as próprias forças, na implementação em que, na verdade, o vencedor arrecadava de programas que pudessem providenciar tudo, e o aumento da exploração de recursos serviços de saúde, educação e alfabetização minerais significativos criou, na elite, grandes de massas para a maioria da população, e expectativas de acesso a rendas excepcionais. numa ampla recusa política em aceitar ajuda externa, com a sua anexa perda de soberania e probabilidade de aumento do endividamento. Mudanças Económicas No entanto, a partida dos portugueses levou ao desaparecimento da rede de cantinas4, Desde finais do século dezanove que a essencial à comercialização agrícola nas zonas economia se tinha caracterizado pelo aumento rurais, com efeitos desastrosos, e essa situação da integração no sistema regional da África foi exacerbada a partir do final dos anos 1970 Austral, centrado na indústria mineira sul- pela guerra com a RENAMO, então guiada africana, e pelo desenvolvimento dos portos e primariamente pelo regime de minoria branca caminhos de ferro de Moçambique para servir da Rodésia, e, depois de 1980, pelo regime de as necessidades dos territórios coloniais do apartheid sul-africano (Hanlon 1991). Após um hinterland vizinho. A nível doméstico, o estado período inicial de crescimento económico lento, colonial baseava-se no desenvolvimento das a guerra começou a ter um impacto directo – as culturas agrícolas do algodão, açúcar, chá, caju, exportações caíram catastroficamente de 225 madeira e outras mercadorias, recorrendo a 4 As cantinas eram pequenas lojas de comércio geral, métodos coercivos e opressivos de exploração normalmente propriedade de e operadas por colonos, forçada da mão de obra – o trabalho forçado e espalhadas por todo o país, que cumpriam um –, para obrigar os camponeses africanos a papel crucial na comercialização agrícola, fornecendo produzirem culturas de exportação para a também sementes, tecidos, utensílios domésticos e implementos agrícolas para as populações locais. 7
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica milhões de dólares americanos, em 1980, para Adversários Políticos menos de 19 milhões em 1984. No entanto, apesar do estabelecimento, após Nessa altura, Moçambique estava já a 1992, de uma democracia “multipartidária” no caminho de se juntar ao Banco Mundial e âmbito de um sistema parlamentar funcional, ao FMI, abandonando o projecto socialista os dois agrupamentos políticos continuaram e liberalizando as suas políticas económicas, em grande medida presos aos seus passados. com uma dependência cada vez maior O Partido Frelimo, que, enquanto movimento da ajuda externa. As políticas adoptadas de libertação, conduziu uma luta armada nessas condições eram dirigidas a agradar à contra o colonialismo português, insistiu, na condicionalidade dos doadores, mais do que altura da independência, em ser reconhecido aos eleitorados nacionais ou mesmo políticas como a única organização política legítima no partidárias: como questionou Joe Hanlon, num país, e, pouco depois, em 1977, declarou-se livro publicado na altura (1991), “Who calls um partido de vanguarda Marxista-Leninista. the shots?” Mas a partir de finais dos anos Em 1991, no seu sexto Congresso, o partido 1990’, com o advento da paz e a descoberta abandonou o Marxismo, mas não conseguiu de depósitos de recursos minerais de grandes sacudir o sentido de direito ao poder que adveio dimensões, as circunstâncias mudaram: de ter derrotado o inimigo colonial que resultou passou a ser possível atrair investimento para na independência. De modo semelhante, a a exploração desses recursos. Estima-se agora RENAMO – cujo nome de Resistência Nacional que Moçambique tenha reservas de carvão da Moçambicana parece constituir uma forma ordem dos 23 biliões de toneladas (entre os de autodefinição apenas com relação ao seu dez maiores a nível mundial) e reservas de gás arqui-inimigo – tem tido enorme dificuldade natural da ordem dos 100 triliões de pés cúbicos em adquirir o jogo de ferramentas políticas (entre os três maiores de África). Emergiu então necessárias a uma oposição parlamentar, e, um novo padrão de crescimento capitalista em muitos casos, continuou a pensar e a local, em que ocorreu um investimento maciço comportar-se como a força de guerrilha que nalguns megaprojectos que vieram a revelar- começou por ser. Apesar disso, conceber a se insustentáveis, com pouco impacto local a luta política posterior ao AGP como sendo nível de infra-estruturas ou de emprego. Este meramente “um movimento socialista de padrão, mantido ao longo do tempo, contém libertação contra uns rebeldes reaccionários evidentemente as necessárias sementes sociais financiados por estrangeiros” é claramente e culturais da “violência estrutural e indirecta” inadequado. Mesmo durante as negociações que é um importante factor causal na actual de paz em Roma, no início dos anos noventa, crise, e tem tido um papel criticamente ambos os lados se recusavam obstinadamente importante na incapacidade de Moçambique em reconhecer a legitimidade do outro: a em passar de uma paz meramente “negativa” Frelimo não conseguia aceitar que um grupo a uma forma de paz positiva potencialmente de oposição pudesse existir por direito, ou se próspera, no sentido que lhes deram Galtung e pudesse basear num apoio popular genuíno; Jacobson (2000). pelo seu lado, a RENAMO não conseguia chegar a reconhecer o Estado moçambicano que tinha passado a ter existência jurídica em 1975 (Della Rocca 2012). Embora ambas 8
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica as partes se movessem relutantemente no menos algumas dessas províncias são também sentido de uma aceitação mútua e tenham ricas em recursos, o que não será coincidência. eventualmente acabado por assinar o AGP, Na altura em que este artigo foi escrito, este a política pós-conflito continuou a basear-se “novo” conflito – a paz que falhou – pode ter nestas desconfianças originais. ou não terminado permanentemente, com um cessar fogo que começou por ser anunciado em Subsequentemente, a liderança da RENAMO e Janeiro de 2017 e prorrogado indefinidamente os seus apoiantes foram largamente excluídos do em Maio do mesmo ano. acesso ao poder político, tanto a nível nacional como local, bem como do acesso a renda.5 Em Abril de 2013, portanto, na aproximação às O Acordo Geral de Paz eleições presidenciais e legislativas de 2014, as forças residuais da RENAMO, que nunca foram O processo que conduziu ao acordo de totalmente desmobilizadas (sob o pretexto de paz moçambicano, em 1992, foi incomum constituírem a guarda do seu líder), decidiram em vários aspectos. Primeiro, não foi um “regressar à floresta” e começar uma extensa processo único, linear, mas consistiu na campanha de ataques terroristas, no que foi, verdade em múltiplas iniciativas por parte de na verdade, uma espécie de “propaganda vários potenciais intermediários, incluindo armada”. Inicialmente, a RENAMO tinha actores estatais, religiosos e leigos, em que duas exigências: a restruturação da Comissão um, a católica Comunidade de Sant Egidio, Nacional de Eleições (CNE), o que acabou acabou por conseguir ganhar a confiança de por ser concedido, e uma tardia renovação ambas as partes – o que, na altura era raro do processo de integração dos soldados da – e intermediar um longo e pesado processo RENAMO no exército nacional numa base de de negociação com muito drama entre os igualdade, que não foi (Darch 2016). Os ataques participantes (Della Rocca 2012). Também em continuaram mesmo depois das eleições, termos eleitorais formais, o AGP providenciou que foram ganhas pela Frelimo, mas com a um enquadramento adequado: ao fim de uma RENAMO a aumentar a sua percentagem de guerra de grande dimensão em 1992, seguiram- votos. Subsequentemente, a RENAMO exigiu se cinco processos eleitorais multipartidários a verificação de seis províncias do centro e do mais ou menos abertos, em 1994, 1999, 2004, norte, onde reclamava ter recebido a maioria 2009 e 2014, todos ganhos por candidatos do dos votos populares nas eleições nacionais.6 Pelo Partido Frelimo (admitidamente com resultados rejeitados pela oposição), e com a RENAMO 5 O termo é usado no seu sentido técnico padrão para a ocupar todos ou quase todos os lugares da denotar benefícios não-ganhos e excessivos, derivados oposição. Para além disso, durante grande de actividades económicas não produtivas, incluindo parte do período entre 1994 e 2013, foi corrupção. possível viajar livremente por todo o território 6 No sistema altamente centralizado em vigor em moçambicano, e houve um crescimento Moçambique, os governadores provinciais são económico impressionante, com o PIB a crescer nomeados pelo Presidente da República. No entanto, por um acordo alcançado em Fevereiro de 2018, de de cerca de 185USD para 405USD ao longo futuro os governadores serão nomeados pelo partido do período de quinze anos. Embora uma maioritário nas assembleias provinciais. Os presidentes parte desse crescimento possa ser atribuível a de município, que antes eram eleitos directamente, uma explosão de crescimento pós-conflito, a serão agora escolhidos da mesma forma indirecta (Hanlon 2018b). percepção de estabilidade política e uma gestão 9
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica macroeconómica cuidadosa atraíram números – uma característica que poderá ter levado à significativos de ajuda externa e investimento. saída de, por exemplo, Raul Domingos e Daviz Resumindo, Moçambique era largamente tido, Simango da RENAMO.7 Este estilo de liderança até há bem pouco tempo – pelo menos pelos não contribui muito para reforçar a capacidade observadores internacionais – como um modelo de um partido parlamentar para desenvolver de reconciliação e crescimento económico pós- políticas ou para responder com agilidade a conflito. novas circunstâncias. O AGP foi assim amplamente bem-sucedido no Ao fim de meses de confrontos, um acordo pôr fim à guerra por um período prolongado. de “cessação de hostilidades” foi assinado Mas o AGP não preparou uma base sólida em Setembro de 2014 para permitir que os para processos que pudessem vir a constituir candidatos da RENAMO participassem na uma paz positiva no seu sentido absoluto: não corrida às eleições de Outubro desse ano. As apenas um fim ao conflito armado, mas uma tensões voltaram a crescer depois das eleições, democratização do Estado, responsabilidade e com a RENAMO a acusar a Frelimo de fraude transparência política, descentralização tanto e supressão violenta da oposição, e exigindo o no sentido administrativo como político, e controle directo de seis províncias (inicialmente uma vida melhor para a maioria dos cidadãos como “regiões autónomas”) onde teria, moçambicanos. alegadamente, ganho uma pluralidade de votos populares. Não se chegou a esclarecer se essa exigência poderia ter sido satisfeita Conflito Renovado no âmbito do quadro constitucional em vigor, mas qualquer debate genuinamente Em 2012, Afonso Dhlakama, aparentemente aberto que pudesse existir foi simplesmente frustrado com o que então via como a congelado pelo assassinato, em Março de intransigência do Presidente Armando 2015, do académico advogado constitucional Guebuza, mudou o seu quartel general para Gilles Cistac, aparentemente por ter explorado as montanhas da Gorongosa e permaneceu formas positivas para realizar a proposta (Darch lá, pelo menos em parte por causa do que 2016). As questões da descentralização foram parecem ter sido graves tentativas do exército consequentemente trazidas de volta à baila no para o capturar ou matar. Dhlakama tinha sido período posterior às últimas eleições. descrito pelo Presidente Joaquim Chissano, numa entrevista de 2011, como alguém que 7 Uma figura de topo do Partido que teve um papel “não conseguiu transformar a sua mentalidade chave nas negociações de paz que levaram ao AGP, de líder de guerrilha para o Moçambique pós- Domingos foi o líder da bancada da RENAMO na guerra. Ele nunca se reintegrou devidamente” Assembleia da República de 1994 a 1999, mas foi (Vines 2013: 375) e o recente regresso à expulso em meados de 2000, formando depois o seu próprio partido, que teve pouco sucesso. Simango, floresta corrobora essa hipótese. Também se filho de um proeminente dissidente da FRELIMO, diz que ele mantém o controle do seu partido foi eleito Presidente do Município da Beira em 2003 pessoalmente e ao pormenor. Durante as pela lista da RENAMO, mas, depois de ser removido, sessões legislativas mantém-se em contacto com concorreu com sucesso para um segundo mandato como independente. Em 2009, fundou o MDM os deputados parlamentares por via telefónica (Movimento Democrático de Moçambique), que é e não tolera iniciativas dos seus subordinados agora o terceiro maior partido. 10
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica O dito “regresso à floresta” não foi originalmente A paz em Moçambique desde 1992, portanto, determinado por cálculos eleitorais, embora numa análise mais atenta, não parece tanto ter a percentagem de votos na RENAMO tenha falhado – no sentido dramático de um colapso melhorado, após anos de declínio, mas esteve instantâneo e de um regresso imediato a um provavelmente ligado à descoberta de recursos confronto generalizado, como aconteceu com naturais, dado, principalmente, que estavam o MPLA e a UNITA após as eleições falhadas de para ser assinados lucrativos contratos para 1992 em Angola. Parece antes ter-se tornado, o gás natural. Parece também provável que a muito lentamente, insustentável no presente resposta militar do governo ao novo conflito quadro do sistema administrativo politicamente de baixa intensidade foi, pelo menos em parte, centralizado vigente, e em circunstâncias facilitada pelo fortalecimento das “forças de económicas radicalmente diferentes. O resto defesa e segurança” através dos notórios deste artigo explica esta assumpção em empréstimos não declarados de cerca de termos históricos. Para entender os processos dois biliões de dólares americanos que foram que levaram à presente situação é necessário revelados ao público em Abril de 2016. examinar uma série de aspectos e momentos determinantes na história de Moçambique pós- É evidente que o conflito dos 16 anos que independência. São estes, primeiro, os efeitos terminou em 1992, e o conflito que iniciou em a longo-prazo do “reenquadramento” coercivo 2013 (e que pode agora ter terminado, embora do discurso político que a Frelimo iniciou em não tenha sido resolvido), são fundamentalmente 1975 e continuou pelos anos 1980’; segundo, a diferentes, tanto nas suas origens como no seu natureza fluida e contestada dos dezasseis anos carácter. As actuais circunstâncias requerem de conflito com a RENAMO e a sua importância novas soluções, talvez de maior alcance que para entender o AGP; terceiro, o próprio AGP, o AGP, que foi essencialmente um mecanismo visto não tanto como uma inovação mas como de estabilização, apesar dos seus elementos uma tentativa de estabilizar relações de poder radicais. O regresso da RENAMO à oposição e de propriedade existentes; quarto, o carácter armada violenta antes das eleições de 2014, incompleto do desarmamento, desmobilização teve lugar num novo contexto em que nenhum e integração militar após 1992-1994; quinto, estado vizinho quis prestar apoio logístico. Até o carácter parcial da descentralização que ponto terá o regresso a uma violência de administrativa; sexto, a expectativa da elite baixa intensidade representado frustração pelos lucros da negociação dos recursos para a RENAMO na sua própria capacidade de naturais e o seu impacto no processo político; e, alcançar sucesso eleitoral, e, com esse sucesso, sétimo e último, a questão de se alguma forma ter acesso a fontes de apadrinhamento? Até de “parlamentarização” é realizável, e, em caso que ponto estaria Dhlakama a liderar o regresso afirmativo, se esta poderia providenciar uma a uma propaganda armada, e, até que ponto solução para o que se poderia prever como estava ele a responder a pressões internas (e, um cenário futuro, hipotético, de conflito talvez, principalmente militares) do movimento? permanente. 11
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica CARACTERÍSTICAS vizinhos – tinha como primeiro objectivo, não ESTRUTURAIS DO CONFLITO E tanto a democracia, no sentido formal de multiplicidade de partidos políticos disputando DA PAZ EM MOÇAMBIQUE o poder em eleições regulares, mas antes a pertença à comunidade de nações soberanas “Reenquadramento” ideológico na em termos de total igualdade. Roger Southall Transição para a Independência8 (2013) chamou a isto democracia para “povos” como nações, em vez de para “povos” ou Os movimentos de libertação nacional na África pessoas como indivíduos. O sucesso da Frelimo Austral, incluindo a Frelimo, chegaram ao poder em conseguir vencer este tipo específico de nos anos 1970’, 1980 e 1990, numa posição libertação garantiu inicialmente ao partido um significativa de dominação política partidária, em alto nível de apoio popular, e a sua posição ondas de apoio popular largamente derivado do como única organização política legítima seu sucesso na expulsão do poder colonial e/ou significou que esse apoio não teve de ser quebrando a supremacia dos colonos. Em 1974, testado eleitoralmente. Na verdade, a simples a exigência central da Frelimo nas negociações ideia de que se pudessem realizar eleições que conduziram aos Acordos de Lusaka – o competitivas foi descartada em absoluto. acordo com os portugueses, garantindo uma No entanto, este domínio foi exercido numa independência incondicional – foi bastante situação em que o partido no poder não tinha explícita: reconhecimento como único estabelecido um controle total e efectivo sobre representante legítimo do povo moçambicano, o aparelho do Estado – como claramente e, assim, como a única organização política demonstra a posterior necessidade das várias possível. A Frelimo conseguiu assim, de uma ofensivas ou campanhas. Estas campanhas, posição hegemónica, ocupar todo o espaço no início dos anos 1980‘, centravam-se político disponível, deslegitimar todas as outras em questões como legalidade, política e posições políticas e formas de nacionalismo, e organização, e resultaram claramente da quase exercer uma liberdade completa na composição visceral desconfiança da Frelimo em relação do governo e a definição, não só da agenda ao aparelho da administração pública herdado política, mas também daquilo que constituía dos portugueses. Moçambique também era a moçambicanidade. A definição era muito ameaçado directa ou indirectamente por simples e totalmente lógica: se se apoiava a interesses hostis ao seu projecto socialista e ao Frelimo era-se moçambicano, se não, era-se seu apoio de princípio às lutas de libertação na outra coisa qualquer. Rodésia e na África do Sul. Olhando para trás, podemos ver que a luta de Tudo isto levou inexoravelmente a um aumento libertação de Moçambique – como a dos países do controle central; a tomada das estruturas administrativas do Estado pelo partido e a 8 O termo “reenquadramento” é aqui usado no deslegitimação de formas alternativas de sentido de um contexto de quadro retórico, em nacionalismo e oposição, cujos seguidores eram que as assumpções básicas do discurso político são caracterizados, nem sempre injustamente, coercivamente mudadas em direcção a conceitos da como infiltrados, o inimigo, xiconhocas (um transformação socialista, não deixando “espaço” para qualquer tipo de refutação sustentável (Darch e personagem corrupto e oportunista de banda Hedges 2013: 56-57). desenhada), e sabotadores. No entanto, mesmo 12
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica se concordarmos em que o objectivo primário durante a “Viagem Triunfal” – atravessando da libertação não é, na maior parte dos casos, todas as províncias e apresentando os novos uma democracia estruturada, é provável que o governadores provinciais da Frelimo (Darch e momento real da libertação nacional contenha Hedges, no prelo) – são exemplos precoces, em si o “momento democrático” tal como e, na verdade, há testemunhos de que os definido pelo académico italiano Luciano discursos foram interpretados de formas Canfora (2006; 2009), um momento em que diferentes por diferentes segmentos da as relações sociais, políticas e de propriedade população. Os africanos parecem tê-los ouvido existentes são ameaçadas pela vasta maioria como críticas impressionantemente francas ao excluída (o “demos”), os que não têm discurso colonial, enquanto os portugueses os propriedade nem poder. Era este provavelmente ouviram como ameaças e abertamente hostis o caso em meados de 1975, quando a vasta (Rita-Ferreira 1988). maioria dos pobres moçambicanos viu os seus antigos senhores coloniais fugir, mas O processo de reenquadramento transcendeu o momento passou. A Frelimo nunca viu a coerção retórica, podendo ser referido como nenhuma razão para criar estruturas formais e uma encenação política. A Viagem Triunfal, instituições que teriam constituído uma forma aparte as transmissões diárias dos discursos e mais ampla e convencional de pluralismo. transcritas nos jornais, pode ser entendida como uma espécie de inscrição espacial simbólica da O processo a que chamei de reenquadramento moçambicanidade, com os novos governadores noutro lugar (Darch e Hedges 2013) começou, apresentados como representantes de uma com seriedade, pouco depois do golpe de nova fonte de poder. Outros eventos, como a Abril de 1974 em Portugal, e mesmo antes da apresentação pública dos traidores no campo independência formal, que teve lugar em 1975. da Frelimo em Nachingwea, no sul da Tanzania, O propósito, explícita ou implicitamente, era criar em inícios de 1975, ou a identificação dos uma nova forma de discurso e comportamento comprometidos, ou colaboradores do colonial- político transformado. Na análise da retórica fascismo português, em Dezembro de 1978, e política, reenquadrar descreve a tentativa de as subsequentes reuniões de Fevereiro e Maio mudar pressupostos básicos sobre a sociedade de 1982, podem todos ser vistos como parte do para um novo tipo de política – no caso de mesmo processo prolongado de definição do Moçambique, a política de independência e que significava ser totalmente moçambicano, transformação socialista. O discurso colonial nas novas circunstâncias da independência. anteriormente dominante foi assim suplantado, A consequência inevitável deste processo de tal forma que não houve nenhuma resposta coercivo de reenquadramento foi o crescimento socialmente sustentável disponível para os que de um discurso em que qualquer oposição discordavam de – ou se opunham a – políticas era representada em termos de sabotagem e particulares. Este processo continuou pelos conspiração pelos inimigos do povo. Claro que anos 80 adentro, e resultou na apropriação da não se pretende, com isto, dizer que o projecto totalidade do espaço político disponível, como socialista moçambicano não estava realmente antes referido. ameaçado por inimigos reais: é, antes, para chamar a atenção para o impacto a longo- Há muitos exemplos deste reenquadramento prazo de um discurso político quase totalmente em funcionamento. A série de discursos feitos enquadrado nesse binário e mesmo em termos por Samora Machel entre Maio e Junho de 1975, maniqueístas. 13
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica Apesar da apresentação formal do pluralismo participação democrática – por outras palavras, político e o fim da economia planificada a partir através do reconhecimento do status quo, por de 1992, o discurso do movimento de libertação mais insatisfatório que pudesse ser. A resposta vitorioso reenquadrado continua a informar da RENAMO, no “documento de 16 pontos”, a política moçambicana contemporânea de afirmava a sua própria legitimidade política – várias maneiras, até ao presente. Quando “A RENAMO é uma força política activa na o antigo presidente Armando Guebuza arena política moçambicana” – e criticava os testemunhou, em 28 de Novembro de 2016, “ataques verbais insultuosos” e a propaganda perante a Comissão Parlamentar de Inquérito do governo como ilusões inúteis. sobre as dívidas secretas, as suas observações ilustraram implícita e exactamente este sentido Claramente, o conflito expôs as características de direito imutável baseado nos sacrifícios feitos chave da guerra civil – foi disputado entre dois no passado. Se tivéssemos de tomar a mesma grupos organizados, principalmente dentro do decisão hoje, observou Guebuza, “faríamos território nacional de Moçambique, e, apesar exactamente a mesma coisa hoje, em defesa da retórica do governo, foi realmente “uma luta da pátria amada”, acrescentando que ele tinha entre dois partidos”. Historicamente, porém, é tido um papel na luta de libertação e que tinha possível e desejável construir uma periodização orgulho no seu patriotismo e nas suas realizações da guerra, mostrando como ela mudou ao longo como presidente (Hanlon 2016: 3; Nhampossa do tempo de uma guerra movida primeiramente 2016: 2). O tom e as implicações são claros, os (mas não exclusivamente) pelos desígnios dos sentimentos amplamente partilhados. governos minoritários da Rodésia e da África do Sul para desestabilizar Moçambique, para uma guerra em que a RENAMO desenvolveu A Natureza do Conflito com a gradualmente a capacidade de tirar partido RENAMO, 1976-1992 das políticas impopulares do Governo (e.g. o programa das aldeias comunais) e manter uma Presentemente, o termo “guerra civil” é acção militar mais ou menos por conta própria. amplamente usado no discurso académico Uma percepção da natureza fluida e contestada e popular para descrever o conflito armado do conflito como ele na realidade foi ao longo dos dezasseis anos, entre o governo de do tempo, em agudo contraste com a rigidez Moçambique e a RENAMO. Na altura, porém, analítica das posições e dos protagonistas, é a caracterização do conflito foi uma questão essencial para entender a complexidade do(s) controversa, quanto mais não fosse como processo(s) que acabaram por levar ao AGP. resultado da recusa de ambos os lados em conceder a mínima legitimidade ao oponente. Esta inflexibilidade da análise da Frelimo à É significativo que, embora o chamado transformação da natureza do conflito com “documento de 12 pontos” tenha circulado a RENAMO foi a consequência lógica do informalmente pela Frelimo em Junho de 1989, processo de “reenquadramento” já descrito, como gambito de abertura no processo de paz, que visou estabelecer a Frelimo como única insistia em que o conflito era “uma operação de expressão legítima possível da aspiração desestabilização que não devia ser confundida política nacional. A Frelimo foi logicamente com uma guerra entre dois partidos”, continuava incapaz de reconhecer o movimento RENAMO argumentando que a mudança constitucional sequer como movimento, menos ainda como e legal só poderia acontecer através de uma articulando qualquer tipo de legitimidade 14
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica de um sentimento político. O grupo foi O livro La cause des armes [A causa das armas], consistente e invariavelmente referido como publicado em 1990 pelo antropólogo francês apenas “bandidos armados”. Isto não era Christian Geffray, teve o efeito de iniciar um uma posição totalmente irracional. A RENAMO acalorado debate académico sobre o carácter tinha sido originalmente criada e apoiada pelos da guerra. Para resumir o seu argumento em serviços secretos rodesianos como MNR ou termos extremamente esquemáticos, no que se Mozambique National Resistance (mesmo o refere às origens da guerra, Geffray atribuiu um nome, nessa fase, era em inglês). Tinha sido papel muito mais importante à insatisfação dos constituído oportunisticamente a partir de vários camponeses com as políticas do governo e aos dissidentes e outros que tinham razões para ataques aos sistemas de crenças locais. O papel não gostarem do projecto socialista da Frelimo. da Rodésia e, depois, da África do Sul, recebeu Depois da independência do Zimbabwe, o papel muito menos ênfase: o que era importante era de apoio e direcção foi assumido pelo regime uma dinâmica interna e local. de apartheid sul-africano, mas o carácter básico da RENAMO continuou a ser o mesmo durante Tudo isto é, claro, uma história académica muito tempo. antiga, mas é importante reconhecer que a simples aceitação do termo “guerra civil” pode A posição da Frelimo não mudou ao longo dos servir para obscurecer pontos significativos anos 1980’. Em Março de 1982, o Presidente sobre o desenvolvimento do conflito ao longo Machel, numa memorável frase de desdém, do tempo e sobre como este terminou. Estes caracterizou a relação entre o regime sul-africano pontos têm implicações para a situação actual e os seus agentes da RENAMO como sendo – primeiro, que múltiplos interesses regionais análoga à existente entre o dono do realejo e internacionais estavam em jogo no contexto e o seu macaco (National Forum Committee da finda Guerra Fria; e, segundo, que estes 1985: 47). Seguiu-se, portanto, como insistiu afectaram profundamente a forma como a Sebastião Mabote9, num discurso de Agosto paz foi finalmente negociada. Regionalmente, de 1985, que o conflito não podia ser descrito as partes interessadas incluíam não só a então logicamente como uma “guerra civil” porque África do Sul do apartheid, mas também o não tinha resultado de uma dinâmica interna Zimbabwe e a Tanzânia, aliados regionais de moçambicana, tendo antes sido determinado Moçambique, e Estados conservadores como pelos interesses dos proprietários que tinham o Kenya e o Malawi. Os grandes poderes – os sido expropriados pelas nacionalizações de Estados Unidos e a União Soviética – viam a finais dos anos 1970’ (FBIS 1985). Assim, o África Austral como um terreno em disputa. conflito apenas poderia ser visto como uma Portugal também foi envolvido como antigo agressão ou desestabilização – a posição poder colonial, com um interesse continuado assumida em 1989 no documento de 12 em Cahora Bassa, e com o seu governo pontos. O discurso político agora dominante, constantemente pressionado por grupos a visão “reenquadrada” da essência do Estado organizados de ex-colonos (os “espoliados do moçambicano independente, não deixava Ultramar”). espaço retórico ou conceptual sequer para a possibilidade de formas legítimas de oposição. A partir deste alargado contexto internacional fluía não apenas um “processo de paz”, mas 9 Um antigo comandante da guerrilha que, na altura, uma matriz complexa e fluida de iniciativas de era Chefe do Estado Maior do Exército moçambicano. 15
Uma História de Sucesso que Correu Mal? O Conflito Moçambicano e o Processo de Paz numa Perspectiva Histórica paz, tendo começado já em 1984, com uma quando a RENAMO quis enfatizar a seriedade gama de possíveis intermediários, de onde, no do conflito então ainda em curso, em Outubro fim, emergiu uma única solução. O processo de 2013, a ameaça que foi feita foi a de pôr fim de concordar em um intermediário em quem aos Acordos de Roma, o que era visto como a ambos os lados confiassem foi longo. Em finais verdadeira referência. de 1988, os sul-africanos sugeriram um papel de mediação para os Estados Unidos, mas a O sistema político que emergiu após o AGP pode ideia foi rejeitada pela RENAMO, e também talvez ser melhor entendido, não como uma não foi apoiada pelo Governo. (FBIS 1989). Os democratização radical e abandono do quadro contactos iniciais com a RENAMO, levados a do discurso político dominante da Frelimo, mas cabo por líderes religiosos com o apoio discreto uma reconfiguração que abriu espaço para do Presidente Joaquim Chissano, tiveram lugar compromissos institucionais como eleições livres no Kenya, em meados de 1989. No entanto, o e uma multiplicidade de partidos políticos, mas Governo da Frelimo não confiava no presidente que não mudou fundamentalmente o mapa do Kenya, Daniel Arap Moi, que, de qualquer vigente do poder. A nova legislação eleitoral, forma, não conseguiu persuadir nenhuma das por exemplo, impôs exigências estritas para o partes a falarem entre si. Outras tentativas de registo de partidos e um patamar mínimo para mediação, envolvendo o homem de negócios a representação na Assembleia (Parlamento), Tiny Rowland e os malawianos, falharam por de forma a dificultar que os pequenos partidos razões semelhantes (Vines 1998). Já, por seu pudessem fazer mais do que participar nas lado, o Zimbabwe e o seu Presidente Robert corridas eleitorais. Isso resultou, na prática, Mugabe eram vistos pela RENAMO como num sistema binário em vez de multipartidário, firmes aliados da Frelimo e, assim, incapazes com o acesso à participação política excluído de agir como intermediários honestos. Mas o para todos menos os dois partidos (armados). verdadeiro ponto delicado era a velha recusa Para além disso, enquanto os deputados eleitos do Governo em negociar directamente com a estavam ligados a regiões geográficas (as listas RENAMO. provinciais dos partidos), não havia nenhum mecanismo que obrigasse a prestar contas a comunidades ou a bases eleitorais específicas. O AGP como Tentativa de Esta disposição tem a vantagem – de um ponto Estabilização e Reconciliação de vista partidário – de limitar a possibilidade de figuras políticas constituírem bases locais de No fim, o AGP foi produzido em Roma, entre poder, o que acabou por acontecer em anos os representantes do Governo e da RENAMO, recentes, com a eleição directa dos presidentes com a mediação da Comunidade Católica de dos municípios. O exemplo mais notável foi Sant’Egídio. O texto em si consistiu em sete o sucesso da candidatura de Daviz Simango protocolos e quatro anexos, cobrindo inter alia como presidente independente do município da o reconhecimento dos partidos políticos, a lei Beira, em 2008. A notícia em Janeiro de 2018 eleitoral, a integração dos militares e o cessar- de que o Governo e a RENAMO acordaram na fogo. O AGP foi, talvez mais que as revisões nomeação dos governadores provinciais pela da Constituição de 1990 e 2004, uma pedra liderança dos partidos, em vez do voto popular, de toque da política moçambicana em mais tende a suportar a visão de que ambos os de vinte anos. É revelador o facto de que, partidos se opõem àquilo que pode representar 16
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