O comércio de cavalos em Cabo Verde (1460-1518): Consequências económicas, sociais e institucionais.

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O comércio de cavalos em Cabo Verde (1460-1518):
              Consequências económicas, sociais e institucionais.

                                                                         Bertelina Brito
                             Mestranda em História Moderna e Descobrimentos Portugueses
                                                                            UNL-FCSH

        Palavras-chaves: Cabo Verde, cavalos, economia e sociedade.

                 O arquipélago de Cabo Verde fica situado na parte meridional do
Atlântico Norte, ao largo do Senegal e da Mauritânia, a oeste do cabo Verde e
distanciando cerca de 500 km do continente africano1. Foi esta posição estratégica,
frente à costa africana e servindo de porto de ligação ao mercado do escravo africano,
que ditou o seu protagonismo nos séculos XV e XVI, a necessidade do seu povoamento
imediato, instalação de estruturas administrativas e financeiras e consequente
desenvolvimento populacional e económico.
        Descobertas, segundo a tese oficial, entre 1460 e 14622, o percurso da história
das ilhas de Cabo Verde, nos primeiros séculos, explica-se pela sua correlação com a
costa africana, mais precisamente com os designados “Rios da Guiné” . Neste contexto,
ao longo do nosso trabalho, de modo geral, teremos sempre em conta o complexo “Rios
da Guiné de Cabo Verde”.
        A zona denominada por “rios da Guiné” segundo os estudos de António
Carreira3 e José da Silva Horta4 era muito imprecisa, compreendendo as áreas
geográficas que ficavam entre o Senegal e a Serra Leoa, tais como rios do Ouro,
Senegal, Gâmbia, Casamansa, Cacheu, Grande, Nuno, Geba e o cabo Branco.

1
  Ilídio Amaral, «Cabo Verde: Introdução geográfica» in História Geral de Cabo Verde, vol. I, 2ª edição,
coord. de Luís de Albuquerque e Maria Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e Cartografia
Antiga; Instituto de Investigação Cientifica Tropical; Praia; Direcção Geral do Património de Cabo
Verde, Lisboa, 2001, vol. I, p. 1.
2
  As ilhas de Santiago, Fogo, Maio, Boavista e Sal foram descobertas em 1460 por Diogo Gomes e
António de Noli ainda em vida do infante D. Henrique; as demais ilhas, Brava, São Nicolau, São Vicente,
Santa Luzia, Santo Antão e os ilhéus Raso e Branco, foram “descobertas” em 1462 por Diogo Afonso.
Sobre este assunto ver Luís de Albuquerque, «Descobrimento das ilhas de Cabo Verde» in História Geral
de Cabo Verde, ob. cit., vol. I, pp. 23-39.
3
  António Carreira, Documentos para a história das ilhas de Cabo Verde e “ Rios da Guiné” (séculos
XVII e XVIII), Lisboa, 1983, p. 13-14.
4
  José da Silva Horta, «A representação do africano na literatura de viagens, do Senegal à Serra Leoa
(1453-1508)» in Mare Liberum, nº 2, 1991, pp. 209-339; José da Silva Horta, A “Guine de Cabo Verde”:
produção textual e representações (1578-1648), tese de doutoramento em História da Expansão
Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2002.

                                                                                                      1
Cabo Verde, principalmente a ilha de Santiago, devido à impossibilidade da
Coroa portuguesa de instalar feitorias na costa africana, era a “feitoria portuguesa da
Guiné”, o centro administrativo de cobranças dos impostos sobre as mercadorias
transaccionadas entre o arquipélago e a costa africana e, de modo geral, de controlo do
comércio realizado na costa da Guiné5. Por outro lado, a ilha de Santiago servia de
escala náutica de apoio para as embarcações que navegavam no Atlântico. Era portanto,
do interesse da Coroa portuguesa que o espaço fosse ocupado de modo a garantir a
soberania portuguesa sobre o terreno e permitisse a sua viabilização como porto de
apoio da navegação no Atlântico.
        Iniciada em 1462, a ocupação de Cabo Verde (encontrado deserto e sem recursos
naturais) desenvolveu-se sobre a alçada do sistema administrativo de donatarias6 e pela
ilha que segundo a documentação da época possuía melhores condições (bons portos e
rios de água doce) para a fixação dos colonos: a de Santiago .
        Segundo este modelo de administração, D. Fernando, como donatário, tinha por
obrigação o povoamento do dito território, a criação e a manutenção de estruturas
económicas e administrativas capazes de tornar o espaço economicamente rentável. Em
contrapartida,     usufruía     de    prerrogativas     administrativas,      jurídicas     e   fiscais,
nomeadamente o direito de estabelecer a arrecadar tributos e a jurisdição cível e crime
sobre os habitantes. Contudo, a alçada sobre os casos que implicassem pena de morte ou
talhamento de membros, era da estrita competência dos tribunais régios7.
        Após a morte do infante D. Fernando, as ilhas continuaram a pertencer ao
património da Casa Viseu-Beja, passando sucessivamente para as mãos de D. João, D.

5
   Sobre a implementação de estruturas administrativas em Cabo Verde ver: André Teixeira «A
Administração das ilhas» in Nova História da Expansão Portuguesa – A colonização Atlântica, vol. III,
tomo II, dir. de Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, coord. de Artur Teodoro de Matos, Estampa,
Lisboa, 2005, pp. 29-79; Ângela Domingues, «Administração e instituições: transplante, adaptação,
funcionamento» in Historia Geral de Cabo Verde, ob. cit., vol. I, pp. 41-116; Zelinda Cohen, Controle e
resistência no quadro do funcionalismo régio insular, (Cabo Verde – século XV a meados do XVIII), tese
de mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Lisboa, Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1999; Zelinda Cohen, Os Filhos da Folha (Cabo
Verde – séculos XV – XVIII), edições Spleen, Praia, 2007.
6
  O arquipélago de Cabo Verde foi instituído em capitania em dois momentos distintos: a 3 de Dezembro
de 1460, o rei doou a D. Fernando, seu irmão, as cinco primeiras ilhas descobertas, Santiago, Fogo, Maio,
Boavista e o Sal; no ano de 1462, D. Afonso V, na carta régia de 17 de Setembro, concede, como mercê,
ao mesmo infante, as restantes ilhas, São Nicolau, São Vicente, Santa Luzia, Santo Antão, Ilhéus e Brava,
tornando-o senhor vitalício das ilhas de Cabo Verde. História Geral de Cabo Verde – Corpo Documental,
vol. I, dir. de Luís de Albuquerque e Maria Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e
Cartografia Antiga; Instituto de Investigação Cientifica Tropical; Praia; Direcção Geral do Património de
Cabo Verde, 1988, doc. 38, pp 107-108; Monumenta Missionaria Africana (1342-1499), edição de
António Brásio, 2ª Série, vol. I, Lisboa, 1958, pp. 579-580.
7
  Idem.

                                                                                                       2
Diogo e a 30 de Maio de 1489 foram doadas ao duque de Beja, o futuro rei D. Manuel I;
em 1495, D. Manuel tornou-se rei de Portugal e todo o arquipélago voltou a ser
integrado no património régio8.
          O donatário, por sua vez, completamente absentista, subdelegou grande parte
das suas prerrogativas aos capitães - donatários, normalmente indivíduos da sua casa
senhorial e da sua confiança com vista a procederem à colonização das parcelas de
terras que lhes eram destinados, criando assim na ilha de Santiago as capitanias –
donatárias.
        A capitania-donatária do Sul/Oeste da ilha, com sede na povoação de Ribeira
Grande (actualmente conhecida por Cidade Velha) foi doada a António de Noli e seus
herdeiros9, e a de Alcatrazes, (Norte/ Este), centrada em Alcatrazes, ficou sobre o
encargo de Diogo Afonso e seus descendentes; coloca-se também a possibilidade de
que, na mesma época, tenha-se criado uma terceira capitania-donataria na ilha do
Fogo10.
        Na Ribeira Grande formou-se o primeiro núcleo populacional do arquipélago,
constituído essencialmente pelo próprio capitão-donatário, alguns membros da sua
família e de portugueses do Alentejo e do Algarve. Por sua vez, na capitania Norte, o
capitão-donatario nomeou um representante para exercer os seus direitos11, sendo esta
delegação de puderes considerado um dos factores do atraso do povoamento efectivo
desta capitania-donataria em relação à de Ribeira Grande.
        Neste primeiro momento sobressai a tentativa do donatário e dos colonos de
tornar o dito território economicamente rentável através da agricultura quer recorrendo à
exploração de géneros de apanho como a urzela, âmbar, sangue-de-drago, sal, etc., e o
desenvolvimento de culturas que lhes eram familiares (as culturas típicas
mediterrânicas), como vinha, azeitona, cevada e trigo, entre outros. Além daqueles
géneros, foram introduzidos a cana-de-açúcar, árvores de fruto e hortaliça e também
foram levados para aí animais (cabras, vacas e cavalos) que foram lançados nas ilhas.

8
  André Teixeira, «Povoamento: Um processo que se prolonga no tempo» in Nova História da Expansão
portuguesa, ob. cit., vol. III, tomo 2, p. 30.
9
   Carta de D. Manuel a D. Branca de Aguiar, 8 de Abril de 1497, publicada in Descobrimentos
Portugueses, edição de João Martins da Silva Marques, vol. III, Lisboa, 1988, doc. 313, pp. 477-478;
Monumenta Missionaria Africana (1342-1499), ob cit., 2ª série, vol. I, doc. 92, pp. 579-580.
10
   André Teixeira, «Povoamento: Um processo que se prolonga no tempo» in Nova História da Expansão
portuguesa, ob. cit., vol. III, tomo 2, p. 32.
11
   Carta régia de 9 de Abril de 1473, confirmada a 27 de Outubro de 1469 publicada in História Geral de
Cabo Verde - Corpo Documental, ob. cit., vol.I , doc. 11, p. 39.

                                                                                                     3
O provimento do arquipélago destes bens essenciais perspectivava não só o
abastecimento do mesmo, como também, através de plantações de cerais, suprimir as
carências cerealíferas que se faziam sentir no Reino12 e difundir culturas compatíveis
com as rotas comerciais que se iam desdobrando, nomeadamente a produção de cereais,
da cana-de-açúcar, da uva e do pastel na ilha da Madeira e os cereais, uva e plantas
tintureiras na dos Açores13
        Todavia, a falta de fertilidade do solo e os grandes períodos de secas não
permitiram a adaptação das culturas cerealíferas e foi necessário introduzir, a partir do
continente fronteiro, produtos tipicamente africanos, como por exemplo o milho-miúdo,
o arroz e o algodão14. Além das condições geo-climáticas, o distanciamento do espaço
em relação ao Reino e a ausência de atractivos monetários não compensavam os gastos
que os colonos teriam para se fixarem no arquipélago, atrasando assim o seu
povoamento, como ficou expresso na carta de régia de 146615.
        Para os eventuais povoadores, maioritariamente comerciantes, só os lucros do
comércio com a costa africana justiçavam a permanência no arquipélago, tendo em
conta que este não apresentava recursos naturais que garantissem um lucro fácil e
rápido, nomeadamente uma actividade agrícola rentável, como foi o caso da Madeira e
dos Açores. Por sua vez, os animais facilmente se adaptaram às condições naturais
apresentadas .
          O cumprimento deste objectivo só se tornou mais efectivo com a publicação da
carta régia de 1466 que garantia aos vizinhos de Santiago facilidades fiscais no trato
com a costa da Guiné. Publicada para efectivar e promover o povoamento de Cabo

12
   A crise cerealífera atingiu Portugal como também toda a Europa. Juntamente com a peste negra, esta
provocou uma grande quebra populacional em Portugal. A procura de novos espaços também passava
pela necessidade de descobrir novos espaços onde se pudesse desenvolver a cultura de cerais.
13
   Alberto Vieira, «Consequências económicas do povoamento da Madeira e Açores», in Portugal no
Mundo, vol. I, direcção de Luís de Albuquerque, Alfa, 1989, pp 189- 200.
14
   O algodão que se plantou nas ilhas de Cabo Ver era de origem africana e estava aclimatada às
condições naturais desta região. Subsidio para a história geral de Cabo Verde, o algodão da ilha do Fogo:
uma matéria-prima de produção afro-europeia para uma manufactura africana» in Stvdia, nº 50, Lisboa,
1991, pp. 157-176. António Carreira, Panaria Caboverdano Guineense, 2ª edição, Instituto Cabo-
Verdiano do Livro, Lisboa, 1983.
15
   Carta de doação régia ao infante D. Fernando, 19 de Setembro de 1466, publicada in História Geral de
Cabo Verde – Corpo Documental, ob. cit., vol. I, doc. 3, pp. 17-19. «D. Afonso […], a quantos esta nossa
carta virem fazemos saber que o infante D. Fernando meu mui prezado e amado irmão nos enviou dizer
como haverá quatro anos que ele começara a povoar a sua ilha de Santiago […] e que por ser tão
alongada dos nossos reinos a gente não quer a ela ir viver senão com mui grandes liberdades e
franquezas».

                                                                                                       4
Verde, as directrizes desta carta permitiam unicamente aos moradores de Santiago, com
algumas restrições16, comerciar livremente na costa da Guiné.
        Para além destas liberdades, ainda gozavam de isenção de pagamento dos
impostos devidos à Coroa nas mercadorias que eram levados da costa da Guiné para a
Europa17. Foi transferido para os moradores de Santiago uma importante prerrogativa da
Coroa portuguesa, uma vez que o resgate da Costa da Guine era exclusivo régio.
        A fim de aproveitar os privilégios concedidos os colonos primaram pelo
desenvolvimento imediato do comércio com os “rios da Guiné”, ao residirem-se na ilha
de Santiago na condição de vizinhos18. Os moradores de Santiago levavam para os “rios
da Guiné” produtos das ilhas e europeus que seriam trocados por produtos locais; os
produtos africanos, adquiridos pelos vizinhos e moradores da ilha de Santiago, por sua
vez, seriam transportados para a dita ilha e vendidos aos mercadores europeus. Em
contrapartida, os mercadores europeus levavam para Santiago, onde faziam escala,
mercadorias europeias para serem negociadas com os povos africanos.
         Além dos produtos importados da Europa para manutenção dos colonos, houve
outros produtos que foi preciso investir no seu desenvolvimento devido à sua
impossibilidade de transporte sem deteriorarem e que com o tempo se adaptaram e
reproduziram com relativa abundância, não só em Santiago como também nas outras
ilhas: árvores de fruto, hortaliças, cavalos e gado.
        Nos primeiros anos de 1500, Valentim Fernandes, referindo-se à ilha de
Santiago, afirma o seguinte:

                                “ Esta ilha dá todas outras frutas de Portugal que se nela
                        plantam, figos, uvas, melões, açucares, e todas outras frutas há por
                        todo o ano. Não dá trigo nem cevada. Dá milho e arroz como em
                        Guiné. Ela tem grandes criações d`animalias e gados”19.

16
   Idem. Era proibido aos moradores de Santiago comerciar na feitoria de Arguim e armas, as ferramentas,
os navios e os respectivos equipamentos não podiam ser utilizados como mercadorias de troca.
17
   Idem.
18
   Eram classificados como vizinhos ou moradores de Santiago qualquer individuo que residisse na dita
ilha com o objectivo de lá permanecer a longo prazo e desenvolver actividades que incentivassem o
povoamento; somente ao morador ou vizinho era destinado os privilégios da carta régia de 1466, ou seja,
só a este grupo populacional pertencia a exclusividade do privilégio de armar navios para comerciar na
costa africana.
19
   Valentim Fernandes, «De Cabo Verde Ilhas» in Monumenta Missionaria Africana (1342-1499), ob.
cit., 2ª Série, vol. I, pp. 743.

                                                                                                      5
No entanto, a produtividade dos mesmos era em número reduzido, não
correspondendo às expectativas da monarquia portuguesa que visava a produção em
larga escala para exportação para outros mercados. Não se trata de afirmar que a
agricultura e a pecuária eram ou não actividades que futuramente poderiam tornar-se
rentáveis, mas naquele momento, não eram estas que incentivam o povoamento do
arquipélago, mas sim a sua posição geográfica.
        Da mesma forma, é esta conjuntura que justifica o povoamento prioritário de
Santiago, a ilha maior e possuidora de bons portos de ancoragem, enquanto que as
restantes permaneciam desertas. Se o papel do arquipélago era apenas de escala de
navios não se fundamentava o dispêndio de dinheiro e tempo para a fixação de colonos
nas outras ilhas, uma vez que era nos portos da ilha de Santiago que se expedia e recebia
os   produtos     necessários     para    a    manutenção       do   circuito    comercial      costa
africana/Santiago/ Europa.
        Vocacionada essencialmente para o comércio, Santiago, mais precisamente a
capitania de Ribeira Grande , sobre o encargo de António de Noli e seus descendentes,
teve um grande protagonismo nos séculos XV-XVI. Efectivamente, era através do porto
daquele povoado que eram feitas as trocas comerciais com o exterior e toda a vida da
ilha e do arquipélago girava à sua volta. Da mesma forma era na mesma que
concentrava a maior parte do contingente europeu, havendo uma circulação permanente
de muitos comerciantes (estantes) e marinheiros (mareantes) portugueses e estrangeiros.
Em 1513 detinha o total de 114 vizinhos20, cifra pouco expressiva tendo em conta que
se tratava de um importante entreposto de venda e compra de escravos.
        O seu protagonismo explica o porque de ser o primeiro povoado a albergar
estruturas administrativas que tinham sob a sua alçada o controle do comércio atlântico
e a cobrança dos impostos devidos à Coroa resultantes daquele trato. À volta da Ribeira
Grande se aglomerou um elevado número de pessoas essencialmente vocacionada para
o comércio (armadores, “línguas”, pilotos, mercadores, marinheiros) que pretendiam
usufruir do trato com a Guiné, sendo a fixação humana em Santiago essencialmente
litoral e sazonal, enquanto o interior permanecia deserto.
        A valorização da Ribeira Grande resulta assim em função directa do êxito do
comércio externo. Na capitania de Alcatrazes, contemporânea da capitania de Ribeira

20
   Carta do corregedor de Cabo Verde, Pero de Guimarães, ao rei dando conta do exercício do seu cargo,
22 de Maio de 1513 publicada in História Geral de Cabo Verde – Corpo Documental, ob. cit., vol. I, p.
219-223.

                                                                                                    6
Grande, tal como o interior da ilha, a população era relativamente escassa, crescendo,
contudo, ao longo do tempo, de modo que a mesma ascendeu nos finais de quatrocentos
ao estatuto de vila .
        A ilha do Fogo foi a segunda a ser povoada em consequência do acréscimo das
trocas comercias com os “rios a Guiné” que obrigaram os moradores de Santiago a
expandir as unidades de produção. A escolha da ilha do Fogo explica-se pela
proximidade que esta tinha com a de Santiago e pelo facto de esta, na altura, ser uma
grande produtora de algodão, produto que também passou a ser decisivo para o tráfico
com a costa africana.
        As restantes ilhas mantiveram-se despovoadas ou então com um povoamento
muito disperso e reduzido e eram designadas “ilhas de montado”, pois eram destinadas
essencialmente à criação de cavalos e gado21. Esta desigualdade explica-se pelo carácter
essencialmente mercantil do povoamento.
        A relação comercial costa da Guiné - Santiago, não só tornou possível o
povoamento das ilhas de Santiago e Fogo, como também definiu os grupos sociais dos
colonizadores que para lá se dirigiram. Por aquela época, constata-se a presença
(temporária ou definitiva) em Santiago de fidalgos, criados do rei, mercadores,
degredados, pilotos, marinheiros, etc., que tinham como objectivo principal o usufruto
do comércio com os “rios da Guiné” e um rápido enriquecimento.
        Destaca-se, contudo, a presença maioritária de mercadores-armadores. No
arquipélago, toda a actividade comercial desenvolvia em torno deste grupo, uma vez
que eram eles que, por um lado armavam navios e por outro lado produziam e
adquiriam a mercadoria que depois eram trocados por escravos na costa africana22.
        Este grupo designado por morador-armador era constituído essencialmente por
funcionários régios (participavam no comércio com a costa), os rendeiros e os
armadores/mercadores e ocupava o topo da hierarquia social. Assim, nas ilhas, não era
somente a condição nobiliárquica que definia o estatuto social de um indivíduo mas

21
   António Leão Correia e Silva apresenta-nos três ciclos para o povoamento das ilhas: o primeiro ciclo
abrangia os séculos XV e XVI e traduziu-se pelo povoamento de Santiago e Fogo já no século XV. No
segundo ciclo, século XVI a XVIII, foram povoadas as ilhas de Santo Antão, Brava e Santo Antão. O
terceiro ciclo, já nos finais do século XVIII e inícios do XIX, caracterizou-se pelo povoamento das
restantes ilhas de Cabo Verde. António Leão Correia e Silva, «Dinâmicas de Decomposição e
Recomposição de Espaços e Sociedades», in História Geral de Cabo Verde, vol, III, coord. de Maria
Emília Madeira Santos, Lisboa, Centro de Estudos e Cartografia Antiga; Instituto de Investigação
Cientifica Tropical; Praia; Direcção Geral do Património de Cabo Verde, 2002, pp. 1-13.
22
   Maria Emília Madeira Santos e Iva Maria Cabral, «O nascer de uma sociedade através do morador-
armador» in História Geral de Cabo Verde, ob. cit., vol. I, p. 379.

                                                                                                     7
sobretudo o seu poderio económico. Os que não participavam directamente neste
negócio recebiam os produtos necessários através de encomendas que faziam aos ditos
mercadores.
       Porto cosmopolita, centro armador e entreposto comercial, o povoado de Ribeira
Grande, teria que albergar necessariamente não só os participantes directos do comércio
africano mas também os que de forma indirecta (pilotos, marinheiros, “línguas”,
reparadores de navios e vendedores de frescos e água) se engajavam como forma de
manter activa aquela constante rede de circulação de bens.
       Com a publicação da carta régia de 1472 que limitava os moradores de Santiago
a utilizarem no comércio com a costa da Guiné apenas “[…] suas novidades e colheitas
[que] na dita ilha houverem […]”, a não utilizarem nas viagens à Costa outro ponto de
origem que não Santiago e a obrigatoriedade que os navios fossem “ […] de pertença
dos moradores e por eles armados e capitaneados, ficando vedada a parceria com não
moradores, nacionais e estrangeiros” 23, houve uma redefinição das especificidades do
aproveitamento económico e geográfico do arquipélago.
         Se inicialmente, os mercadores residiam em Santiago e Fogo por questões
meramente comerciais, com a publicação daquela carta régia, estes tiveram que
estabelecer-se num tempo mais prolongado no território e dedicaram-se a actividades
que tornavam o solo produtivo como forma de usufruírem das prerrogativas de
comércio com a Costa e garantir o abastecimento no mercado africano das mercadorias
desejadas e em troca adquirir os artigos africanos.
       Nas últimas décadas do século XV, para além de servir de papel comercial e de
acostagem de navios, a ocupação física do espaço passou a ter em conta, também as
melhores condições para o desenvolvimento de actividades internas rentáveis, ou seja, a
pecuária e a agricultura. Nas ilhas Santiago e do Fogo a ocupação do interior foi feita
com recurso à criação extensiva de cavalos e o cultivo do algodão. Da mesma forma nas
restantes ilhas, na ocupação dos espaços houve um predomínio da pecuária intensiva.
       Tendo em conta o sistema de capitanias, tanto o donatário como os capitães do
donatário perspectivaram o desenvolvimento de actividades que lhes garantiam lucros
elevados e ao mesmo tempo reduzidos custos de exploração. Efectivamente devemos ter
em conta que o arquipélago cabo-verdiano é um espaço concreto e específico, no qual

23
  Carta de limitações de privilégios de 1472, publicada in História Geral de Cabo Verde - Corpo
Documental, ob. cit., vol. I, pp. 27-28.

                                                                                             8
se adaptou um determinado modelo, e por consequente sujeito às especificidades das
ilhas.
         Uma vez que a transplantação de espécies vegetais e animais por todo o
Ultramar português visava acima de tudo a busca de vantagens económicas imediatas,
pautou-se, pela substituição da paisagem natural por uma moldada pelos critérios da
utilidade submissa à troca.
         A partir de 1472 o sector agro-pecuário reforçou-se e desenvolveu vocacionado
essencialmente para o comércio com o continente fronteiro, em que se destacavam o
cavalo e o algodão como produtos dominantes, embora não exclusivos, devido ao seu
valor económico, social e honorifico que detinham para os africanos24.
         Razões de ordem climática, natural e alimentar explicam a grande procura deste
animal nos “rios da Guiné”. No que concerne ao primeiro ponto, as altas temperaturas
(média variável entre 26 e 29 ºC) durante todo o ano, o elevado nível de humidade e de
pluviosidade (precipitações anuais próximas de 1800 mm), a presença constante de
mosquitos e moscas, assim como o ambiente natural caracterizado por florestas e terras
pantanosas tornavam impossível a sobrevivência dos mesmos, assim como a
alimentação inadequada.
         Por último, associado à questão económica, estava a de honra e distinção social.
Acostumadas ao consumo do cavalo que era levado do Norte de África, as classes
nobres da Alta Guiné e os chefes recorriam ao uso do cavalo de modo a demonstrar o
seu poderio económico e estatuto social25.
          Não se tratava de “uma monocultura agrícola típica”, contudo, os géneros não
detinham todos a mesma importância económica26; o cavalo e o algodão, sendo as
mercadorias que detinham maior procura na costa africana e as que, efectivamente,
desenvolviam nas ilhas com grande facilidade, foram as que se procurou incentivar a
sua produtividade27.

24
    António Correia e Silva chama atenção ao valor dos tecidos e dos cavalos entre as populações da costa
da Guiné, onde somente os grandes senhores usavam roupas de algodão e detinham cavalos, sendo estes
produtos utilizados como forma de distinção social. A impossibilidade de criação de cavalos nas regiões
dos “Rios da Guiné” devido às altas temperaturas tornava este produto ainda mais desejado. António
Correia e Silva, «Espaço, ecologia e economia interna» in História Geral de Cabo Verde, ob. cit., vol.I,
pp. 186-192.
25
    Idem.
26
   Idem. Complementarmente se desenvolvia outras actividades agrícolas, como a cana-de-açúcar, diversas
frutas, produtos hortícolas e milho, e pecuárias (bovinos, caprinos e seus derivados).
27
    Além destes factores, no que concerne ao transporte de seres vivos como o cavalo, a prerrogativa tempo
de viagem era imprescindível. Quando menor fosse o percurso entre o ponto de carga e a descarga do
produto, maior era a probabilidade de sobrevivência dos animais. A substituição de Portugal por Santiago

                                                                                                        9
No arquipélago o que se verifica é que a função económica se aliou ao da escala
e as duas tornaram-se interdependentes. Devido à sua correlação com a costa da Guiné e
consequente ponto de suporte dos navios que realizavam a rota Europa/ Guiné, toda a
produção interna visou essencialmente o interesse do mercado africano, condicionado,
no entanto, sempre pelas características típicas dos solos e do clima das ilhas.
        Assim vamos assistir em Santiago e no Fogo ao desenvolvimento de uma agro-
pecuária intensiva ligada ao mercado externo, principalmente do algodão e nas restantes
ilhas de uma pecuária extensiva, assente maioritariamente no gado caprino e no cavalo,
apesar, de estas apresentarem relevos distintos. A criação de cavalos e gado, a
agricultura e o comércio tornaram-se assim, no século XV, as actividades económicas
fundamentais, em que a primeira era praticada em todas as ilhas do arquipélago,
havendo, contudo, um predomínio da agricultura e o comércio nas de Santiago e Fogo.
         Na ilha de Santiago, ao mesmo que crescia o comércio, também se apostou no
desenvolvimento de uma agricultura das culturas que consideradas aptas para os solos
da ilha. Tendo em conta as fontes, esta era a ilha que possuía melhores condições
(“extensão, solo, recursos hídricos, poros, etc.”) para a pratica de uma “agricultura
intensiva, em grande escala e exportadora”.
        A prática hegemónica da agricultura extensiva atingiu também a ilha do Fogo, a
segunda a ser povoada, partir de 1480, devido ao seu papel como centro produtor de
algodão28. Não dispondo à partida de condições para a pratica da agriculta, a quase
monocultura do algodão se impões pela sua proximidade com a ilha de Santiago e por
ser uma apendículo da mesma.
        Contudo muitos dos soldos da dita ilha eram deficientes de água doce, ou seja,
não possuem vocação agrícola e por isso eram utilizados como montados. Nos séculos
XV e XVI, as restantes ilhas permanecerem desabitas, registando apenas alguns
moradores sazonais que controlavam os animais que pastavam e matavam o gado
destinado à exportação.
        Nas ilhas de Santiago e do Fogo, a partir dos inícios do século XVI, verifica-se
um crescente desenvolvimento da agricultura e da pecuária, uma progressiva ocupação

como ponto de abastecimento de cavalos que iam para a costa Guiné delimitava a distância a percorrer e
consequentemente as perdas.
28
   A cultura do algodão começou a ser desenvolvido no século XV em Santiago e no século seguinte o
Fogo passou a ser o seu centro produtor a larga escala no arquipélago devido à sua importância como
moeda de troca no comércio com escravos na costa da Guiné.

                                                                                                   10
do interior das mesmas ilhas e consequentemente a criação de grandes fazendas agro-
pastoris.
         Ilídio Amaral nos demonstra como era feita a ocupação dos espaços geográficos
nas ilhas de Santiago e Fogo no século XVI: a agricultura seguiu o curso das ribeiras,
instalando-se em terras irrigadas; as terras de encosta e achadas, sobretudo áridas e
semi-áriadas, foram utilizados como matos maninhos e montados para os cavalos e o
gado e a população residia à volta dos portos29.
         Na ilha de Santiago a população fixou-se essencialmente no Sul, onde se
encontravam os principais portos, Praia e Ribeira Grande por serem regiões protegidas
dos ventos do sul e por se situarem perto das ribeiras mais abundantes de água: ribeiras
de Águas Belas, Chuva-Chove, São Domingos, Trindade, Santa Cruz, São Marinho,
Praia Formosa, etc. Em algumas destas ribeiras, nos períodos de maior procura,
cultivava-se o algodão de regadio. Adstritas aos espaços de residência surgem as terras
de regadio (dedicadas essencialmente as culturas alimentares facilmente perecíveis e a
cana-de-açúcar).
         As culturas pluviais, isto é, dependentes das chuvas do Verão eram praticadas
nas zonas médias e altas do nordeste da ilha30 e entre os meses de Julho a Janeiro – são
das denominadas culturas de sementeira, onde predomina o milho, o feijão e a abóbora.
As de sequeiro predominavam essencialmente nas seguintes ribeiras: Boca Larga,
Ribeira Seca, dos Órgãos e São Domingos, Cumba e a da Praia Formosa, etc., - regiões
onde se encontravam grande parte das grandes propriedades rurais da ilha. As zonas
rasteiras, «as achadas», nos meses de chuva, devido ao crescimento de pastagens áridas
ou semi-áridas, tornam-se espaços de pasticho e criação intensiva de cavalos, cabras e
vacas.
         Na ilha do Fogo a maior parte do espaço estava destinado à criação de cavalos e
gado devido à sua aridez e secura, tais como os montados do Curral, Lapa-cavalo,
Luzia-nunes, e os do capitão-donatario (Fernão Gomes). As culturas de sequeiro,
principalmente do algodão, eram praticadas nas ribeiras e encostas situados tanto a Sul

29
   António Correia e Silva, «Espaço, ….» in História Geral de Cabo Verde, ob. cit., vol. I, p. 194. Sendo
administradas sobre o regime de morgadios e capelas, as fazendas agro-pastoris não eram contínuas e
nem de uma só cultura. Situadas ao longo das ribeiras nas mesmas produziam-se vários produtos, tais
como, algodão, cana-de-açúcar, hortaliças, milho, frutas, etc.
30
   Essencialmente vales abertos semi-húmidos e húmidos.

                                                                                                      11
como a Norte31. Nas zonas de ribeiras – Campana, Pico, Patim, etc. - não existia um
fluxo de água constante e por isso não era possível a prática da agricultura de regadio32.
         Nas restantes ilhas, ao contrário de Santiago e Fogo, a agricultura não deteve
um papel assim tão importante na economia, sendo produzido apenas os bens
necessários à sobrevivência dos colonos. O aproveitamento económico das mesmas era
feito essencialmente pelo recurso à criação de animais.
        A pecuária extensiva sobrepôs-se às diversidades naturais uma vez que por
exemplo as ilhas de São Nicolau, Brava e Santo Antão não apresentavam condições que
as tornavam mais aptas para a pastagem, nomeadamente, as montanhas que
dificultavam o controlo dos cavalos e do gado em geral. Como afirma Valentim
Fernandes, estas eram caracterizadas por “ hua serra muita alta”33. Por sua vez, as ilhas
de Maio, Sal, Boavista, Santa Luzia e os Ilhéus, com pouca vegetação, possivelmente a
maioria rasteira e pouco desenvolvida, eram propícias para o desenvolvimento da
pecuária34.
         Esta situação se justifica porque os donatários das ilhas desabitadas eram
completamente absentistas: mantinham apenas as estruturas de exploração económica
suficientemente para a sua rentabilização, dedicando apenas a actividades de recolha,
como o algodão, o âmbar e a urzela e à criação de animais, entre os quais o cavalo. Por
outro lado, nas ilhas de Santiago e Fogo se registava um povoamento contínuo e uma
florescente actividade comercial vocacionada para o mercado externo.
        Infelizmente, em relação aos outras ilhas, quer devido à falta de fontes como
pela falta de bibliografia não nos é possível fazer uma caracterização da distribuição
geográfica da pastagem dos animais mas partimos do princípio que ocupavam grande
parte das terras, uma vez que a mesmas eram desabitadas e destinadas essencialmente a
criação de animais.
        Sempre Associado ao trato com a costa da Guiné estava a captação, por parte da
Coroa, das receitas fiscais resultantes do rendimento interno gerado pelo arquipélago e
do tráfico mercantil. Consequentemente, a alteração da política de aproveitamento
económico das ilhas terá produzido modificações neste campo.
31
   Estes solos eram húmidos devido ao efeito dos alísios de nordeste; aquela humidade tornava possível a
prática da agricultura intensiva, ao contrario do que se verificava na parte austral, oposta à exposição dos
alísios, onde o solo árido e o povoamento escasso.
32
   A ilha do Fogo possuiu terreno com declive acentuado dificultando infiltração e a conservação de água
das chuvas no solo.
33
   Valentim Fernandes, «De Cabo …» in Monumenta Missionaria Africana (1342-1499), ob. cit., 2ª Série,
vol. I, pp. 744-745.
34
   António Correia e Silva, «Espaço …» in História Geral de Cabo Verde, ob. cit., vol. I, pp. 208-210.

                                                                                                         12
As obrigatoriedades impostas pela carta régia de 1472, o aumento do fluxo
comercial crescente entre “ Rios da Guiné”/ Santiago / Europa, a permanência mais
tempo dos colonos no arquipélago e o recorrente recurso a importação de certos
produtos para sua manutenção do seu estilo de vida, estimularam a produção interna o
desenvolvimento, criando, portanto, uma economia passível de ser tributada35.
        Assim, nos finais do século XV o rei retirou das mãos do donatário a
prerrogativa da cobrança dos direitos que recaiam sobre a produção agro-pecuária, a
designada dízima da terra; impôs novos impostos aos moradores de Santiago e Fogo
(além do quarto passou a ser cobrado também a vintena); anulou a isenção fiscal
outorgado pela carta régia de 1466.
        O que se consta no arquipélago é a continuação da aplicação da política
centralizadora de D. Manuel l que pretendia deter total controlo sobre os territórios que
estava sobre a alçada da Coroa portuguesa, os tributos cobrados e sobre o aparelho
burocrático, ao nível da fazenda, justiça e guerra. Seguindo esta política, D. Manuel I,
como donatário e depois como rei, abrangeu todo o território com o mesmo sistema
tributário que tinha aplicado nas ilhas de Santiago e Fogo, embora, com pequenas
alterações.
        Nas demais ilhas do arquipélago, devido à sua vocação para a pecuária extensiva
e recolecção de riquezas naturais, a fiscalidade incidia apenas sobre os bens produzidos
e exportados nestas ilhas, variando o imposto de ilha para ilha: o dízimo era cobrado nas
de Santo Antão, São Nicolau, São Vicente, Maio e Boavista; nas de Santo Antão, Maio
e Boavista era também tributado o quarto e “na de Brava a metade dos couros, sebo e
carne exportadas e o dízimo das outras fazendas que se fizessem na lha, nomeadamente
o algodão”36.
        É nesta perspectiva que também se entende a criação no arquipélago,
primeiramente dos órgãos da Fazenda, órgãos responsáveis pelo controle do trato que se
realizava entre Cabo Verde a Europa e os “rios da Guine”. Em 1466 criou-se
formalmente o almoxarifado de Santiago na capitania de Ribeira Grande e em 1471 foi
nomeado o primeiro almoxarife (Diego Gomes). Em seguida, foi criado um outro em
Alcatrazes e a partir da 2ª década do século XVI verifica-se do declínio da capitania de

35
   António Correia e Silva, «A Tributação nos Primórdios da História de Cabo Verde» in História Geral
de Cabo Verde, op. cit., vol. I. pp. 353-358.
36
   André Teixeira, «A Economia – o comércio: do resgate no litoral africano ao comércio transatlântico.
A recolecção, a pecuária e a agricultura. A tributação e as finanças» in Nova História da Expansão
Portuguesa – A colonização Atlântica, ob. cit., vol. III, tomo II, p. 158.

                                                                                                    13
Alcatrazes e a vila da Praia a substituía como sede da capitania Norte. A Contadoria,
por sua vez, surgiu por volta 1480, sendo mencionado pela primeira vez numa carta de
mercê a Diogo Lopes.
        Todas estas medidas nos demonstram a importante papel que detinha o comércio
e a produção de cavalos na economia do arquipélago, tanto que era utilizado como
forma de pagamento dos direitos reais que eram cobrados nos contratos de
arrendamento, como foi o caso do arrendamento das ilhas de Santiago, Fogo e Maio,
efectuado entre D. Manuel e Afonso Lopes dos Couros, a 6 de Fevereiro de 150737.
        A mudança de investimento em capital não só mercantil mas analogamente no
produtivo, estimulado pela carta régia de 1472, redefiniu igualmente o papel dos
homens de negócio que além de mercadores e armadores de navios também passaram a
ser terratenentes (proprietários rurais), pois estes eram os responsáveis pela produção
das mercadorias internas que deviam ser trocados pelos escravos na costa da Guiné.
Armador, mercador e produtor rural, os homens que detinham este estatuto controlavam
a economia das ilhas e principalmente o tão desejado trafico das mercadorias africanas.
        Enfim,     agricultura, pecuária e         povoamento       dispersos     são   itens   que
predominavam em Cabo Verde nos dois primeiros séculos da sua descoberta.                          O
desenvolvimento populacional e a sua distribuição pelo espaço nos primeiros séculos da
descoberta do arquipélago foram condicionados pela forma como se incrementou as
actividades económicas, criando uma incompatibilidade entre a pecuária extensiva e a
fixação dos colonos.
        O povoamento era muito escasso e sazonal ou praticamente nulo nos espaços
onde dominava a pecuária extensiva e as actividades de apanho: ilhas de Santo Antão,
São Nicolau, São Vicente, Santa Luzia, Sal, Boavista, Maio, Brava e Ilhéus; nas de
Santiago e Fogo, onde se destacava a agricultura extensiva, o número populacional
tendia a ser “intenso, permanente e estável” 38.
        Existe uma clara distinção dos papéis que as ilhas deviam desempenhar: as de
Santiago e Fogo, essencialmente na zona dos portos, Ribeira Grande e Alcatrazes eram
centros de exportação, pontos de conexão entre o mercado externo e as outras ilhas do
arquipélago assim como o interior das duas primeiras ilhas; as zonas do interior de

37
   Cópia do alvará de arrendamento das ilhas de Santiago, Fogo e Maio efectuado entre D. Manuel I e
Afonso Lopes dos Couros, publicado in História Geral de Cabo Verde - Corpo Documental, ob. cit., vol.
I, pp. 169-172.
38
   António Correia e Silva, «Espaço …» in História Geral de Cabo Verde, ob. cit., p. 227.

                                                                                                  14
Santiago e Fogo e as outras ilhas eram centros produtores dos bens destinados a aquele
comércio.
       Esta dificuldade no povoamento das ilhas também por sua vez colocou entraves
na implementação do modelo de administração predestinado para as mesmas, uma vez
que a mesma pressupunha a existência de um certo número de habitantes capazes de
desenvolver actividades económicas sob os quais deveriam recair os foros, tributos e
direitos que seriam tributados pelo donatário, o que não acontecia nas restantes 8 ilhas
do arquipélago, com excepção de Santiago e Fogo.
       Em conclusão temos assim no arquipélago nos finais do século XV e inícios do
século XVI, a seguinte situação económica e produtiva para as ilhas de Cabo Verde: em
Santiago uma actividade comercial próspera, conjugada com uma agricultura rentável,
diversificada e exportadora, uma actividade pecuária também bastante rentável e
exportadora, uma importação de bens que não existiam ou que não podiam ser
reproduzidos em Santiago, actividades de apanho, como a urzela e um povoamento
crescente e contínuo, principalmente nas zonas dos portos; na ilha do Fogo a
preponderância o cultivo do algodão e em segundo plano a criação de animais e um
povoamento contínuo mas ainda assim lento; nas restantes ilhas a maior parte do solo
era destinado à criação de animais, registando por outro lado as actividades de apanho e
um povoamento lento, disperso e sazonal.

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de Luís de Albuquerque, vol. II, publicações Alfa, Lisboa 1989, pp. 150-170.

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- «Subsidio para a história geral de Cabo Verde, o algodão da ilha do Fogo: uma
matéria-prima de produção afro-europeia para uma manufactura africana» in Stvdia, nº
50, Lisboa, 1991, pp. 157-176.

       Viera, Alberto, «Consequências económicas do povoamento da Madeira e
Açores», in Portugal no Mundo, vol. I, direcção de Luís de Albuquerque, Alfa, 1989,
pp. 189- 200.

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