Brás, Bexiga e Barra Funda - António de Alcântara Machado
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Brás, Bexiga e Barra Funda António de Alcântara Machado Análise da Obra CELY ARENA são “paulista de quatrocentos anos”, comumente em- pregada no século passado como epíteto enaltecedor da condição de verdadeira brasilidade. Acompanhando a tradição familiar, Alcântara Machado cursou a Faculdade de Direito de São Pau- lo, de 1919 a 1923, iniciando nesse período, como crítico de literatura, teatro e música, uma intensa ati- vidade jornalística, que nunca abandonaria. Além de colaborador de vários jornais e revistas (Jornal do Comércio, Revista do Brasil, Diário Nacional, Diários Associados, etc.), dirigiu diversas publica- ções ligadas ao Modernismo, todas de vida breve, como Terra roxa e outras terras (1926), Revista de Antropofagia (1928), Revista Nova (1931), em que perfilou ao lado de escritores que ajudara a vaiar, no Teatro Municipal, durante a Semana de Arte Moder- na de 22. O motivo de sua mudança de atitude talvez se ex- plique por uma viagem de quase oito meses que rea- lizou à Europa do entre-guerras, em 1925, durante a qual pôde observar com outros olhos o Brasil de sua geração, como registrou numa crônica: O horror não coube na Europa e transbordou. O mundo inteiro sentiu o abalo. No Brasil o que só estava António de Alcântara Machado de pé por milagre desmantelou-se logo em ruínas. Tudo no chão: finanças avariadas, literatura erradíssima, política inqualificável, jornalismo desonesto (…). E me deixem agora falar da literatura, coitadinha. Foi nela O AUTOR bem ou mal que a revolta da geração explodiu primeiro. António Castilho de Alcântara Machado d’Oli- Decidiu-se começar por aí matando o que já estava veira nasceu a 25 de maio de 1901, em São Paulo, morrendo. (…) Os helenos foram enxotados. Que apa- numa família representativa da aristocracia da terra, reçam os brasileiros.” (Cavaquinho e Saxofone) orgulhosa de exibir em sua linhagem políticos e le- Os episódios dessa viagem, publicados no Jornal trados; de uma frase de seu pai, membro da Acade- do Comércio, compuseram seu primeiro livro: Pa- mia Brasileira de Letras, teria sido cunhada a expres- thé-Baby, panoramas internacionais, editado em UNICAMP • 2006 112 ANGLO VESTIBULARES
1926, com prefácio telegráfico de Oswald de Andra- política, atuando a favor da Revolução Constituciona- de: “(…) culpa sua ter esgotado literatura viagens esse lista de 1932 por meio de um trabalho inovador na Rá- cinema com cheiro que é Pathé-Baby.” O título des- dio Record. Em 1933, transferiu-se para o Rio de Ja- venda a intenção: menciona uma marca de máquinas neiro e lá se elegeu, no ano seguinte, deputado federal de filmar, e Alcântara Machado procurava exatamen- por São Paulo na Assembléia Nacional Constituinte. te registrar impressões fugazes, captando o maior Não chegou a assumir o cargo: morreu de repen- grau de informatividade dos detalhes inesperados, te, aos 34 anos, vítima de uma apendicite diagnosti- triviais, em frases nominais curtas e ágeis que marca- cada tardiamente. Portanto o amadurecimento esti- riam seu estilo e lhe valeriam, a seu ver sem justiça, lístico que começava a se processar infelizmente não “fama (ou cousa parecida) de gozador e de seco.” ocorreu, e Alcântara Machado comparece nos manuais Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) foi seu se- de Literatura Brasileira, quase sempre, como uma gundo livro publicado. No ano seguinte, lançou La- promessa não cumprida nos rumos da ficção. Assimi- ranja da China, coletânea cujo título foi extraído de lou as inovações criadas na prosa, sobretudo pela fe- uma paródia dos acordes da introdução do Hino Na- ra da vanguarda, Oswald de Andrade, atenuando-as cional (“Laranja da China, Laranja da China, Laranja num estilo mais palatável, sem ter tido tempo para da China / Abacate, cambucá e tangerina”, conforme burilá-lo. o poema “O Amador”, de Mário de Andrade). Nessa fase, dirigiu a “Primeira Dentição” da Re- vista de Antropofagia, até se desligar, junto com A OBRA Mário de Andrade, para formar a “corrente brilhante, a que vivia nos salões da burguesia paulista e que o Temas e formas milionarismo displicente de António de Alcântara Brás, Bexiga e Barra Funda — notícias de São Machado encarnou”, no dizer de Oswald de Andrade, Paulo compõe-se de onze historietas, híbridas de que o acusou de desperdiçar sua “sensibilidade e ta- conto e crônica, que vêm sendo publicadas junto lento para compreender os tempos novos” na “suave com as de Laranja da China, desde 1961, sob o títu- ilusão de que a Antropofagia era uma piada.” lo Novelas Paulistanas. Em 1929, Alcântara Machado publicou sua últi- Quando da primeira edição do volume, em 1927, ma obra em vida: uma monografia premiada pela três delas (“Gaetaninho”, “Carmela” e “Lisetta”) já ha- Sociedade Capistrano de Abreu, Anchieta na Ca- viam sido publicadas no Jornal do Comércio, as pitania de São Vicente, que forneceu mais munição duas últimas acompanhadas da observação: “Para para os antropófagos radicais o ridicularizarem, des- um possível livro de contos: ÍTALO PAULISTAS.” ta vez por acreditar “em carpintaria teatral, no padre Tanto essa observação quanto o título da obra Anchieta e no monstrengo mental que foi Capistra- — referência a bairros paulistanos pobres, industriais, no de Abreu. Pior. Convencido que está tendo influên- em que se concentraram imigrantes italianos (note-se, cia na prosa brasileira!” na seqüência dos nomes, a sonoridade resultante do Concluído o processo de combate ao passadismo, aumento progressivo do número de sílabas) — apon- que impunha a necessidade de detonar o vício da tam para a temática comum das histórias e para o verbosidade, da eloqüência vazia, Alcântara Macha- tipo de abordagem pretendido pelo autor. Já no pre- do distanciou-se dos modismos que marcaram a fácio, sintomaticamente denominado, em jargão jor- “fase heróica” do Modernismo. Mana Maria (roman- nalístico, “Artigo de fundo”, ele esclarece tratar-se de ce inacabado) e Vários Contos, publicações póstu- uma tentativa de “fixar tão-somente alguns aspectos mas (1936), atestam a busca de maior penetração psi- da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos cológica e uma linguagem mais segura e equilibra- mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais da, livre da insistência em certos recursos estilísticos nada. Notícia. Só.” e truques do “fazer moderno”. Alcântara Machado nasceu redator e grande lei- Seus “textos de circunstância”, publicados em jor- tor de jornais. Tinha faro inigualável para captar, em nais e revistas sob o título Cavaquinho e Saxofone registros triviais, o detalhe capaz de transformar uma (1940), muito esclarecem a respeito de seus pontos notícia de atropelamento ou crime passional, um de vista sobre as artes, a mentalidade e a política da anúncio de estabelecimento comercial ou uma sim- época, assim como denunciam a extrema vivacidade ples nota de coluna social em matéria literária, ul- e a inquietação que, se o levaram a criticar a “barrei- trapassando sua condição de assunto “que amanhã ra de ignorância e de mesmice, de tradição e de pie- interessará menos do que hoje” (A. Gide). Aderindo guice que parecia invencível” na cultura brasileira (o ao Modernismo, descobriu o Brasil em aspectos fuga- “me-ufanismo” e as “potocas românticas”), levaram- zes do cotidiano paulistano. -no também a incursionar por diferentes gêneros A cidade via-se invadida pelos “novos mamalu- sem aprofundar-se em nenhum. cos”, “intalianinhos”, “carcamanos” em busca de inte- Após mais uma longa viagem à Europa (de outu- gração e ascensão social. Na década de 1910, eles de- bro de 1929 a junho de 1930), envolveu-se também na tinham o primeiro lugar entre os estrangeiros proprie- UNICAMP • 2006 113 ANGLO VESTIBULARES
tários de imóveis da zona urbana — mas ocupavam o Não se considere, porém, pela diferença desses oitavo lugar, numa escala até onze, pelo valor desses registros, que a postura de Alcântara Machado seja de imóveis. Eram, portanto, muitos e pobres. Atento a reverência absoluta. Embora ele afirme que “Brás, isso, Oswald de Andrade fora o pioneiro da crônica Bexiga e Barra Funda não é uma sátira”, há quem de imigração na imprensa paulista, sendo sucedido veja, por trás da intenção de fixar o ambiente ur- por Alexandre Marcondes Machado — com o pseu- bano dos pobres, em vez da busca de componentes dônimo Juó Bananere — na imitação do dialeto ítalo- anedóticos da realidade, um elitismo incontornável, -paulista, o português macarrônico, na revista O como se o autor não pudesse abandonar o “vasto Pirralho, que circulou de 1912 a 1917. Ambos recorre- vício de origem” — sua condição de aristocrata —, li- ram à paródia, transcrevendo a mistura de calabrês, mitando-se a olhar de fora ou de cima, com uma sim- napolitano e vêneto (na verdade, um novo dialeto, patia irmã do paternalismo. Os ítalo-paulistas de suas inexistente na Itália) com o português falado pela po- relações, aos quais a obra é dedicada, são todos famo- pulação mestiça e negra e pelo caipira, como másca- sos e/ou ricos, não barbeiros ou costureirinhas. Enca- ra para veicular opiniões políticas da elite. beça a lista o nome de Lemmo Lemmi (1884-1926), Alcântara Machado dispôs-se a homenagear a popularizado pelo pseudônimo Voltolino, grande italianidade lingüística e comportamental que mar- ilustrador e caricaturista politicamente engajado, cri- cava o dinamismo da cidade em expansão, recrian- ador da imagem de Juó Bananere e de inúmeros do-o na linguagem certeira das notícias de jornal. outros tipos “da colônia” cuja situação real procurava Embora elogiasse “as deformações da sintaxe e da retratar, contra as informações oficiais, conveniente- prosódia, aqui italianização da língua nacional, ali na- mente maquiladas, sobre os imigrantes. cionalização da italiana, saborosa salada ítalo-pau- Por outro lado, não se deve descartar a constata- lista” criada por Juó Bananere, Machado não o imita: ção de que o efeito cômico obtido por Alcântara Ma- integra vocábulos e estruturas frasais da língua italia- chado, pela sutileza da ironia, afinal ressalta, por con- na ao português coloquial das personagens, preser- traste, o caráter de documento e crítica social das his- vando a brasilidade do narrador. Comparem-se, por tórias, o riso mal mascarando — justamente para re- exemplo, estes dois fragmentos: velar — grande dose de piedade. “Conforme aparlê, o Semanigno, aquil- lo bandito celebro que pregô a faca na máia, fui prendido, interrogadimo butado incomunicabile inda a sulitara. Segondaferra o garçeriere fui lá buscá illo pr’a apurtá pr’u gabinetto di denti- ficaçò. Pensa che illo stava lá? Una ova!! Fugi chi né uni rojò.” (de “Grime rroroso”, um dos “Crimos celebros” relatados por Juó Bananere em La divina increnca, de 1924). “Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhan- do para a ponta acesa. Deu um ba- lanço no corpo. Decidiu-se. — Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade… Sob a minha direção, si capisce. — Sei, sei… O seu filho? — Si. O Adriano. O doutor… mi pare … mi pare que conhece ele?” (do conto “A sociedade”, em Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado). UNICAMP • 2006 114 ANGLO VESTIBULARES
OS ENREDOS O motorista rende-se à condição de levar Bian- ca também, e os três passeiam de carro pela cidade. Gaetaninho Domingo seguinte, Carmela enfeita-se para um Gaetaninho banza no meio da rua. Quase é atro- novo passeio e dispensa a companhia de Bianca, que pelado e nem vê. A mãe o chama para dentro, chi- lhe conta a opinião do Ângelo: “você está ficando mes- nelo na mão. Numa jogada de corpo treinada no fu- mo uma vaca.” tebol, ele consegue entrar sem apanhar. Saem as duas juntas, a pé, para que os pais de O sonho de Gaetaninho era andar de automóvel Carmela não desconfiem do programa. — luxo possível só em dia de casamento ou enterro. Carmela segue no carro. Bianca, sozinha, encon- Beppino, por exemplo, fora de carro ao Araçá, na- tra uma amiga a quem conta tudo e esclarece que o quela tarde, acompanhando o caixão de uma tia. Ângelo “é pra casar”. Deitado, Gaetaninho sonha, no princípio acor- dado, com o enterro da tia Filomena, que ele acom- Tiro-de-guerra nº 35 panharia na boléia do carro, elegantíssimo, admira- do pela gente dos palacetes. Acorda com a cantoria Aristodemo Guggiani aprendeu a roubar, a amar da tia, desapontado. o Brasil e a cantar os hinos da pátria no Grupo Es- O relato do sonho de Gaetaninho enerva a tia colar da Barra Funda. Filomena e inspira os irmãos dele a apostar no ele- Depois trabalhou na oficina do cunhado, na- fante, no jogo-do-bicho — dá a vaca… morou, quis ser jogador de futebol e artista de circo, Gaetaninho participa de uma pelada na rua. No empastelou o FANFULLA para defender o Brasil — gol, distraído, faz inveja ao Beppino, porque iria no patriota convicto. dia seguinte ao enterro do pai de um amigo. O “guar- Aos vinte anos, brigou com o cunhado e empre- dião sardento” perde uma bola e corre para buscá-la gou-se como cobrador de bonde. Na linha, uma na- na rua. É atropelado e morto pelo bonde em que vi- morada o espiava passar diariamente. nha seu pai. Um dia a seção das leitoras da revista A Cigar- A meninada espalha a notícia — Gaetaninho “amas- ra deu que A.G. sumira da vista da senhorinha F.R. sou o bonde”. A vizinhança prepara-se para o enterro. Ela não sabia que ele agora era soldado do Tiro-de- Na tarde seguinte Gaetaninho vai para o Araçá, guerra nº 35. não tão elegante como no sonho, nem na boléia: vai Aristodemo evolui com a companhia no Largo num caixão, coberto com flores pobres. Quem vai Municipal sob o comando do sargento cearense na boléia é Beppino. Aristóteles Camarão de Medeiros. Por influência do sargento, grande amante da pá- tria, Aristodemo torna-se ainda mais nacionalista e Carmela ganha o cargo de ajudante-de-ordens. Fica encarrega- Carmela deixa a oficina de costura acompanhada do de providenciar cópias do hino nacional para o pela amiga Bianca e arruma-se para encontrar o pessoal ensaiar. namorado. Enquanto ela confere cada detalhe do Na noite seguinte, o ensaio é interrompido por um rosto num espelhinho, Bianca avisa-lhe que estão “isbregue”: Aristodemo deu um tabefe no alemãozinho, sendo espiadas pelo motorista enluvado de um Buick porque ele estava escrachando com o hino nacional. que já viram outro dia. O sargento desliga o alemão da companhia e cas- Ângelo Cuoco, entregador da Casa Clark, es- tiga Aristodemo com um dia de suspensão, mas o elo- pera Carmela. Ao vê-lo, ela despacha Bianca, para gia pelo exemplo de patriotismo (a ser seguido, porém poder conversar com ele a sós, no trajeto para casa. sem tanta violência). A prosa tem pouco assunto. Ângelo vê o Buick e arma Aristodemo troca seu emprego de cobrador da uma cena de ciúme. Companhia Autoviação Gabrielle d’Annunzio por Bianca, que seguia o casal a distância, é abor- outro igual, na mesma linha, na Sociedade de Trans- dada pelo motorista, que matreiramente a convence portes Rui Barbosa. a revelar o nome e o endereço de Carmela e a marcar com ela um encontro para o dia seguinte, atrás de uma igreja. Amor e sangue Sozinha outra vez com Bianca, Carmela recebe o Nicolino vai para o trabalho distraído, com a recado e nega-se a aceitar o convite. alma “negra”. À noite, deitada na cama com a irmãzinha, Car- Um amigo lhe avisa, no caminho, que a Grazia mela olha as figuras de um folhetim, que alimen- acaba de passar, sem que ele a veja. Nicolino a xinga. tam suas fantasias românticas, até que o pai, enfure- Na barbearia, Nicolino ouve o comentário de um cido, manda apagar a luz. freguês sobre um crime passional ocorrido na vés- Carmela e Bianca encaminham-se para o en- pera e noticiado no jornal: o culpado certamente será contro. absolvido alegando “privações de sentido”. UNICAMP • 2006 115 ANGLO VESTIBULARES
Saída da fábrica. Nicolino tenta conversar com Quando entram em casa, a mãe perde a timidez e Grazia e não consegue — ela não quer, está com ciú- parte para os safanões, tabefes e chineladas. Os ir- me daquela “fedida da Rua Cruz Branca”. mãos espiam de longe. Quando o mais velho retorna do Saída da fábrica, outro dia. Nicolino tenta nova- trabalho, defende Lisetta, que já não agüenta mais mente falar com Grazia. Rejeitado, derruba-a com apanhar. uma punhalada. No outro dia ela ganha um urso de lata, feio, pe- “— Eu matei ela porque estava louco, Seu Dele- queno, feito pelo irmão. Tranca-se com o brinquedo gado!” no quarto, para ninguém mais o tocar. A desculpa de Nicolino ganha fama e vira estri- bilho numa paródia de música popular, rebatizada “Assassinato por Amor”. Corinthians (2) vs. Palestra (1) Miquelina assiste à partida de futebol no Par- que Antártica, acompanhada da amiga Iolanda. A sociedade Torce para o Palestra, em que joga o namorado A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos Rocco. O ex-namorado, Biagio, é meia-direita do ti- e Arruda avisa ao marido que não permitirá o casa- me adversário e freqüentador da Sociedade Benefi- mento da filha Teresa Rita “com filho de carcamano”. cente e Recreativa do Bexiga; por causa dele Mique- Adriano Melli — o filho de carcamano — passa e re- lina não vai mais lá, trocou de time e de amor. E ago- passa com seu Lancia, buzinando, na frente da casa da ra torce apaixonadamente. namorada, que larga o livro para ir vê-lo do terraço. Terminado o primeiro tempo, Miquelina manda A mãe a põe para dentro ameaçando contar ao pai. o irmão procurar o Rocco e recomendar que quebre Teresa Rita e Adriano encontram-se na vesperal o Biagio, “que é o perigo do Corinthians”. do Clube Paulistano, onde dançam e conversam. Prossegue a partida, com turumbamba na arqui- A mulher insiste com José Bonifácio: nada de bancada e na geral — briga entre torcedores. casamento da filha com o filho de carcamano. “— Quantos minutos ainda? O carcamano, Cav. Uff.* Salvatore Melli, visita o Oito.” Conselheiro e propõe uma sociedade: o brasileiro é Rocco faz pênalti em Biagio. proprietário de terrenos ociosos vizinhos à fábrica Miquelina nem quer ver a cobrança. Biagio faz do italiano, que entraria no negócio com o capital. o gol de desempate para o Corinthians. Adriano Melli “fará o gerente”. Final de jogo. Bonifácio consulta a mulher. Ela o libera para A torcida corinthiana comemora pelas ruas. Mi- aceitar a proposta de sociedade. quelina, frustrada, quer morrer. Seis meses depois, Adriano pede Teresa Rita em No bonde, ela ouve os comentários ridiculari- casamento. No chá do noivado, o carcamano lembra zando o Palestra e culpando seu namorado pela à futura sogra do filho seus tempos de merceeiro e derrota. freguesa. Miquelina pede a Iolanda que ela e o irmão a le- vem à Sociedade, à noite. E responde à amiga, quando esta pergunta sobre o Biagio, que “não é da sua conta”. Lisetta Lisetta, no bonde com a mãe, vê o urso de brin- Notas biográficas do novo deputado quedo de uma menina rica. Esta, notando o interes- O coronel Juca recebe do administrador de sua se, provoca-a, exibindo o urso com insistência. Li- fazenda de café uma carta comunicando a morte do setta não se contém e pede para tocá-lo. A menina compadre italiano e pedindo instruções sobre o desti- responde com uma careta e continua a provocação. no a ser dado ao afilhado agora órfão, Gennarinho. A mãe de Lisetta desculpa-se com a mãe da dona Dona Nequinha, mulher de Juca, recomenda que não do urso e, não obtendo atenção, envergonha-se e be- tome decisão apressada. lisca a filha. Gennarinho chega a São Paulo. Conduzido de Lisetta arma um escândalo — grita, chora. A carro à casa do coronel, num bairro chique, vai cus- outra menina continua a provocá-la, mesmo depois pindo pela janela, no caminho. Ao chegar, prende o de descer do bonde, agitando o brinquedo na rua. dedo no portão, diz palavrão e entra berrando pelas Para se consolar, Lisetta quer viajar sentada, mas escadas. Só faz gentilezas aos padrinhos por ordem a mãe pagou uma passagem só e lhe dá outro belis- de seu acompanhante, filho do administrador da fa- cão. zenda Santa Inácia. Dona Nequinha, em conversa telefônica com uma * amiga, mostra-se apiedada e encantada com o menino. Abreviatura de “cavaglieri ufficiali”: comenda vendida pela co- roa da Itália — contrastando com o título “conselheiro”, con- O coronel já parece francamente apaixonado por ele e cedido pelo Império. não tarda a aportuguesar seu nome para Januário. UNICAMP • 2006 116 ANGLO VESTIBULARES
O casal discute o futuro do afilhado e decide ma- concorrente e recebe do italiano a promessa de uma triculá-lo num colégio de padres. comissão. O coronel ajuda a aprontá-lo e leva-o para o colé- Dona Bianca põe o filho na cama quando Natale gio, no carro fechado, com motorista. A merenda foi entra anunciando que o negócio foi fechado. Merece preparada pessoalmente por Dona Nequinha. “A comemoração — ainda não com vinho italiano, só comoção era geral.” com meia cerveja. Na entrevista com o reitor, Gennarinho é apre- Deitada, a mulher olha o filho doente, olha a ima- sentado como Januário Peixoto de Faria. gem de Santo Antônio e imagina-se “no palacete mais “O coronel seguiu para o São Paulo Clube pen- caro da Avenida Paulista”. sando em fazer testamento.” Nacionalidade O monstro de rodas O barbeiro Tranquillo Zampinetti não perde o a- Na sala da casa de Dona Nunzia, que está deses- pego à terra natal. Acompanha a guerra pelo jornal, perada, amigos e vizinhos fazem-lhe companhia e dis- torce e canta pela vitória da Itália e surra os dois filhos cutem detalhes do enterro de sua filha pequena, en- porque se recusam a falar e até entender italiano. quanto a velam. É madrugada chuvosa. Os visitan- À noite, na calçada com a mulher, Tranquillo às tes rezam, enquanto na rua patinam as carrocinhas vezes conversa com conterrâneos. Assunto: Itália. O de padeiro e recolhem-se os foliões — é carnaval. barbeiro sonha com o regresso. Na sala de jantar, alguns homens discutem se o Um político, italiano como ele, aspirante a um almofadinha que atropelou a menina vai ficar impu- cargo público, convence-o a votar no Brasil sem ne, como sempre acontece com os ricos nesta terra. abandonar a nacionalidade, recorrendo a um expedi- O caixão é carregado para o Cemitério do Araçá ente ilegal: usar outra “caderneta”. Tranquillo experi- por um grupo de moças. menta, gosta e passa até a “cabalar” votos. Os acompanhantes distraem-se no trajeto conver- Com o tempo, ele enriquece; compra imóveis, de- sando sobre futebol; as moças disputam as alças do dica-se à política e tem amigos influentes. O filho mais caixão nas proximidades da Avenida Angélica só para velho, Lorenzo, está noivo; o outro, Bruno, cursa o gi- “se mostrar”; alguém batalha votos para uma eleição. násio. Quando lhe pedem dinheiro para a campanha Os transeuntes rendem homenagem discretamente. da guerra européia, Tranquillo quase cede, mas sua Passam carros a caminho do corso carnavalesco. mulher o convence a voltar atrás. No fim ele nem se Uma das moças volta do cemitério trazendo a importa mais com a guerra. É eleitor no Brasil. chave do caixão para Dona Nunzia, que admira a fo- Dono de mais imóveis, fecha a barbearia. Anima- tografia da filha publicada no jornal. O pai saiu atrás -se a falar mais português e manda construir uma ca- de um advogado pensando em conseguir indenização. pela para a família no Araçá. O italiano já tem um neto brasileiro, filho de Armazém Progresso de São Paulo Lorenzo, quando Bruno conclui os estudos de Direito. O “primeiro serviço profissional” do filho bacharel Em seu armazém, que promete um conto de réis é requerer oficialmente a naturalização do pai. ao freguês que não encontrar ali qualquer mercadoria desejada, Natale atende o filho do doutor da esquina; vende-lhe cigarros às escondidas, marcando produto ANÁLISE diferente na caderneta, para o pai dele não perceber. O armazém, que antes tinha só uma porta, agora Foco narrativo tem quatro: Natale não sai do balcão, e sua mulher As histórias são contadas em terceira pessoa, ora ajuda na cozinha e no “bocce”. Reclama dos impos- por um narrador observador, que anota suas impres- tos, mas vai juntando dinheiro no banco. sões a certa distância, como fotógrafo de situações, Natale observa a Confeitaria Paiva Couceiro, em ora por um narrador onisciente, que penetra superfi- frente, abarrotada de cebolas — produto barato — e cialmente no íntimo das personagens. Nos dois ca- imagina-se comprando a bom preço, no leilão da fa- sos, o discurso direto (com a reprodução literal das lência, o estoque do português, que lhe deve dinheiro. falas das personagens, sem intermediações) assegura Dona Bianca manda chamar o marido na cozinha o tom coloquial buscado pelo realismo do autor. e leva-o ao quarto para contar o que ouviu comen- Além das falas em italiano puro (“— Evviva il cam- tarem no “bocce”: o preço da cebola vai subir. Ela su- pionissimo!”) e daquelas em português macarrônico gere que o marido aproveite a “deixa” e aceite a cebo- (“— Francese? Não é feio non. Serve.”) exploram-se re- la do português como pagamento da dívida, para cursos como: lucrar depois. 1) o uso de tipos em caixa alta que sugerem aumento Natale confirma a informação com o autor do no volume da voz — “... da Independência o brado comentário, o funcionário do Abastecimento José Es- re-TUMBAN-te!”; “Solt’o rojão! Fiu! Rebent’a bomba! piridião, que o aconselha a obter a cebola sem dó do Pum! CORINTHIANS!” UNICAMP • 2006 117 ANGLO VESTIBULARES
2) a separação de sílabas reproduzindo o ritmo do de amendoim” (mostra de racismo tributável ao nar- discurso — “CA-VA-LO”; “Eu que...ro o ur...so! O rador?); ali se comenta que “as bananas na porta da ur...so!” QUITANDA TRIPOLI ITALIANA eram de ouro por 3) o uso de parênteses a indicar o berro distante — causa do sol” e que “não adiantava nada que o céu “(Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra”; questa principessa!)” acolá se registra a imagem dos “bondes formando cor- dão”, apinhados, com “gente no estribo. E gente na O narrador não privilegia a formalidade: o dis- coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado da curso em tom coloquial, natural, conciso demonstra a entrevia.” (observe-se o emprego do polissíndeto pa- grande contribuição do Modernismo contra a proli- ra reforçar a idéia de acúmulo de pessoas). Mais xidade derramada, “bacharelesca”, outrora valorizada adiante se lê que “garoava na madrugada roxa”. Ano- na Literatura Brasileira. ta-se apenas o necessário para produzir impressões, Alcântara Machado tem perfeita noção do ritmo e disseminando-se os dados do ambiente nas entre- do colorido da linguagem oral — pode-se apreciar sua linhas dos enredos, o que confere às frases um colo- expressividade de contador de casos nestas passagens rido especial e evita digressões discursivas que que- do conto “Carmela”: “E — raatá — uma cusparada da- brariam seu ritmo. quelas.”; “Carmela olha primeiro a ponta do sapato Nesse sentido, são especialmente expressivas as esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de onomatopéias: “dlin-dlin” (sineta de escola), “ — uiiiiia novo, depois a do direito outra vez, levantando e des- — uiiiiia “ (buzina de automóvel), “ — prrrrii!” (apito cendo a cinta.”; “No degrau de cimento ao lado da mu- de juiz de futebol), “pan!” (cobrança de pênalti), “a lher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo vaia do saxofone: turururu — turururum!” O efeito, cospe e cachimba, cachimba e cospe.” embora pueril, casa bem com a evidente intenção de No mesmo conto, há passagens em que o narra- alcançar a máxima síntese pelo recurso a elipses, dor onisciente formula o discurso indireto em frases justaposições e metonímias de plasticidade notável. curtas: “O caixa d’óculos não se zanga. Nem se atrapa- Os ambientes interiores, raros, são mobiliados lha. É um traquejado.”; “Depois que os seus olhos cheios com simplicidade: vê-se no quarto de Carmela o de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do mesmo tipo de caminha de ferro em que dorme o Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo filho de Dona Bianca e Natale, no quarto dos pais, bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervo- enfeitado por uma imagem de “SANTO ANTÔNIO DI síssima.” O narrador vale-se também do discurso indi- PADOVA COL GESÙ BAMBINO bem no meio da pa- reto livre, modulando sua expressão, ao apropriar-se rede amarela”. No quarto do coronel Juca e de Dona das frases das personagens com entonação própria, Nequinha tambem se vê um santo — só que São obtida do vocabulário e da construção: “Percorre logo José, numa redoma; o luxo de despertador e criado- as figuras. Umas tetéias. A da capa é linda mesmo. No -mudo é prerrogativa dos donos da fazenda de café. fundo o imponente castelo. (...) E atravessada no ca- chaço do ginete a formosa donzela desmaiada entre- gando ao vento os cabelos cor de carambola.” Tempo Em síntese, nas várias formas de discurso utiliza- O tempo cronológico da maioria dos contos é das, notam-se a brevidade e a fragmentação da lin- bastante breve, concentrando-se os fatos em horas, guagem coloquial. O uso recorrente do presente do dias ou semanas, em razão dos próprios enredos. Em indicativo faz que o leitor perceba os fatos como se “O monstro de rodas”, o relato não ultrapassa o pe- eles estivessem ocorrendo no momento da leitura. ríodo compreendido entre o velório e o enterro de uma criança; em “Corinthians (2) vs. Palestra (1)”, o enre- Espaço do inicia-se em plena partida de futebol para encer- Todas as histórias se localizam no espaço urbano rar-se no momento das comemorações da torcida de São Paulo, em particular nos bairros que figuram vitoriosa. Em “Amor e sangue”, Nicolino passa por no título da obra, embora não faltem citações sobre Grazia sem a ver, um dia; em outro a aborda quando pontos então considerados “nobres” (Avenida An- “As fábricas apitavam” e por fim, quando mais uma gélica, Higienópolis, Paulista) ou centrais (Rua Barão vez “As fábricas apitavam”, mata-a com uma punha- de Itapetininga, Largo Santa Cecília). Excetuando-se lada. No conto “Carmela”, num fim de tarde a pro- o conto “Lisetta”, todos os demais contêm indicações tagonista é convidada para um passeio de carro; no sobre logradouros, acompanhadas às vezes do nú- dia seguinte o realiza, levando junto a amiga Bianca; mero da casa ou da loja. “Carmela” detém o recorde, no domingo posterior, passeia de novo, desta vez sem acumulando uns dez nomes do gênero em suas pou- a acompanhante. cas páginas — a personagem passeia e conduz o Mesmo nos contos que cobrem uma extensão leitor num “tour” pela cidade. mais ampla da vida das personagens (como “Nacio- As descrições espaciais propriamente ditas são nalidade”, em que o enriquecimento e o abrasileira- raras: cita-se aqui uma “rua suja de negras e cascas mento de Tranquillo Zampinetti vão da infância do UNICAMP • 2006 118 ANGLO VESTIBULARES
filho mais novo até seu bacharelado), é nítida a busca A Cigarra), o nacionalismo (o cobrador deixa o em- da síntese: a passagem de um momento para outro é prego na companhia cujo nome homenageava o es- traduzida graficamente por espaços em branco entre critor italiano Gabrielle d’Annunzio para trabalhar as partes de cada história. numa similar que homenageava Rui Barbosa). O Empregam-se vários recursos para aparentar si- quadro de agitação da metrópole não ficaria comple- multaneidade. No conto “A Sociedade”, por exemplo, to sem essas referências às máquinas — índices do a letra da música cantada pelo “crooner” de uma or- progresso, palavra-chave na década de 1920. questra vem destacada por tipos em caixa alta e frag- Entretanto, o excesso de ocorrências desse tipo, mentada pelo relato do que ocorre no salão de baile, se é útil às intenções documentais, sem dúvida está onde se ouvem trechos de várias conversas paralelas, entre os fatores do anacronismo dos textos, que se ora transcritas em discurso direto, ora entrecortadas tornaram, meio pesadamente, crônicas urbanas da pela repetição da referência genérica de que havia fase em que Alcântara Machado, segundo seu amigo “alegria de vozes e sons”. Sérgio Milliet, vivia ainda na “adolescência literária”. “O monstro de rodas” mostra em discurso direto a reza de uma Ave-Maria entremeada com ações paralelas (carrocinhas derrapam na rua, alguém Personagens espia, alguém boceja). O momento mais dramático é Em tom acusador, mesmo alguns apreciadores acentuado pelo uso de parênteses para registrar a das crônicas de Alcântara Machado mencionam a concomitância: “O caixãozinho cor-de-rosa com listas falta de profundidade psicológica de suas persona- prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos gens nesta obra “inaugural” de sua ficção. Ele teria olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a criado meros tipos, operando generalizações superfi- molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da ciais, que na verdade escamoteariam o preconceito Margarida e da Linda.” Como em outros contos, neste de “paulista quatrocentão” contra os imigrantes (ter- se vê também o recurso da justaposição do nome de mo então pejorativo; os italianos de primeira e segun- uma personagem e dos dizeres de uma placa: “(…) da classe mereciam o nome de “turistas”), com os quais Américo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA — En- jamais chegou a conviver — ao contrário de Alexan- graxa-se na perfeição a 200 réis)”. Promovendo uma dre Marcondes Machado, o Juó Bananere, que, como associação imediata que dispensa quaisquer esclareci- estudante da Escola Politécnica de São Paulo, freqüen- mentos, o autor obtém, assim, grande concisão: mais tava o Bom Retiro, outro reduto de “carcamanos”. uma vez, substitui-se a eventual prolixidade discursiva Ora, essa suposição ganharia pertinência apenas pelo elemento concreto, numa visão metonímica que se fossem desconsideradas as afirmações do autor de confere ao detalhe o poder de condensar o significa- que não se trata de sátira, de que não pretende se apro- do do todo. fundar, mas apenas prestar “uma homenagem à força Parece prioritário para Alcântara Machado subli- e às virtudes da nova fornada mamaluca”, “novíssima nhar a contemporaneidade dos textos, tornando-os raça de gigantes”. Também se precisaria ignorar o des- documentos de época com a menção freqüente a tino das personagens: crianças morrem (Gaetaninho, marcas (goiabada Pesqueira; queijo Palmira; refrige- a filha de Dona Nunzia), têm desilusões (Lisetta) ou rante Si-Si; cigarros Bentevi, Sudan Ovais; cerveja An- são forçadas a abrir mão da própria identidade para tártica, Pretinha, Hamburguesa); músicas (“Fubá”, obter uma estreita perspectiva de progresso (caso de “Caraboo”, “Zé Pereira”, “Scugnizza”); periódicos (jor- Gennarinho, cujo nome mescla o italiano Gennaro nais FANFULLA, GAZETA; revista A Cigarra); esta- com o sufixo diminutivo do português -inho, órfão belecimentos comerciais (Casa Clark, Salão Mundial, que deve se tornar Januário para fazer jus à condição Casa São Nicolau); clubes (Esmeralda, Paulistano, de herdeiro brasileiro). Moças bonitas iludem-se com Sociedade Beneficente do Bexiga), etc. sonhos de fortuna ou sucesso (Carmela e Miquelina Nesse rol, os veículos — bondes, coches, automó- estão fadadas a escolher parceiros “da colônia”). Mes- veis (com suas marcas, como Ford, Buick, Lancia, mo os novos-ricos devem investir muito trabalho e Hudson) — são especialmente importantes, como arcar com certas perdas — o Cav. Uff. Melli foi bata- motivos desencadeadores de conflito (“Gaetaninho” e teiro antes de se tornar a personificação do capital e “O monstro de rodas”), como elementos caracteriza- padecerá socialmente com sua intransponível inade- dores de poder econômico (“A Sociedade” e “Carme- quação; Tranquillo Zampinetti começa fazendo bar- la”) ou espaços (em “Lisetta” e trecho de “Corinthians bas e acaba abandonando suas prezadas raízes; no (2) × Palestra (1)”, o caráter coletivo do bonde é in- caminho entre Dona Bianca e seu palacete da Aveni- tensificador do conflito central). No conto “Tiro-de- da Paulista há horas no comando da cozinha e do guerra nº 35”, vários dados se atrelam ao bonde: a “bocce” e um filho com a perna cheia de feridas. condição econômica do protagonista (cobrador), o Como se verifica, há mais pontos para o drama, espaço da cidade (a linha do bonde), um recorte con- os limites e as dificuldades do que para a esperteza, o creto da cultura popular (a ausência do cobrador no arrivismo bem-sucedido e o otimismo. Os detalhes bonde inspira a seção de fofocas amorosas da revista cômicos não tornam risíveis as figuras dessa galeria: UNICAMP • 2006 119 ANGLO VESTIBULARES
reforçam o patético das situações e consolam o leitor, Os figurantes não poderiam faltar nos painéis ao mesmo tempo que ampliam a sua empatia. montados por Alcântara Machado. Sua presença, Os retratos, muito econômicos, resultam em geral muitas vezes, limita-se à menção de nome e profissão de dados inscritos dinamicamente no enredo. Assim, (“Conversando com o Giribello, o sapateiro, o pai da Ge- as características das personagens brotam da fixação noveva”), a algum dado valorativo (“Dentro do círculo instantânea de algum detalhe destacado num mo- palerma de mamãs, moças feias e moços enjoados”; “O mento de ação, como se observa nos exemplos se- filho do doutor da esquina, que era muito pândego e guintes: comprava cigarros no armazém mandando-os debitar • Gaetaninho — “Virou o rosto tão feio de sarden- na conta do pai com outro nome”), a informação sobre to, viu a mãe e viu o chinelo.” raça (“Na orquestra o negro de casaco vermelho afasta- va o saxofone da beiçorra para gritar”; “A negra de san- • Gennarinho — “(…) com o nariz escorrendo. dália sem meia principiou a segunda volta do terço”; “A Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na negra de broche serviu o café.”; “O negro fedido bebeu de mão.” — o detalhe do nariz traz aos componentes um gole só. Começou a cuspir.”) ou cultura (“O profes- “chiques” da figura a realidade da falta de polidez. sor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um “Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem sujeitinho de óculos.”). Isso tudo pode estar desligado pôs ordem na cabelada cor de abóbora. Na terceira ten- do enredo propriamente dito, mas é essencial ao con- tativa fez uma risca bem no meio da cabeça.” texto global do livro: representa a heterogeneidade da • Nicolino — “Ia indo na manhã. A professora pú- população na capital, abarcando, por estereótipos, blica estranhou aquele ar tão triste.” — o leitor apreen- proletários italianos e negros em convivência com fa- de o estado de alma do protagonista através da avalia- mílias burguesas, pintadas também com cores críticas. ção de outra personagem. “Nicolino apertou o fura-bo- los entre os dentes” — a italianice se vê concentrada num movimento típico, indicador de sentimentos vio- LEITURA E EXERCÍCIOS lentos e promessa de vingança. Texto I • Adriano Melli — “A mão enluvada cumprimen- O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de tou com o chapéu Borsalino” — e Teresa Rita — “Ves- quinhentão. tido do Camilo, verde, grudado à pele, serpejando no — A gente vai contando os trouxas que tiram o terraço” — detalhes de vestuário assumem a ação chapéu até a gente chegar no Araçá. Mais de cinqüen- para denotar “status” e comportamento. ta você ganha. Menos, eu. • Carmela — “O vestido de Carmela coladinho no Mas o Pepino não quis. E pegaram uma discussão corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelho de sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo para os Feitiço. lábios dos amadores.” — as peças do vestuário e o — Deixa eu carregar agora, Josefina? escandaloso da nudez dão conta da vulgaridade que — Puxa, que fiteira! Só porque a gente está che- ressalta da pretensa elegância resultante do acordo de gando na Avenida Angélica. Que mania de se mostrar, cores. “Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que você tem! que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois O grilo fez continência. Automóveis disparavam o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por para o corso com mulheres de pernas cruzadas mos- último as bolas de metal branco na ponta das orelhas trando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ônibus, descobertas.” — o leitor vê Carmela à medida que ela dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada. se vê, isto é, acompanha sua observação como se ele Na Praça Buenos Aires, Tibúrcio já havia arranja- próprio participasse do texto. do três votos para as próximas eleições municipais. • Natale — “Deu na Dona Bianca um empurrão — Mamãe, mamãe! Venha ver um enterro, mamãe! contente da vida, deu uma volta sobre os calcanhares, (“O monstro de rodas”) deu um soco na cômoda, saiu e voltou com meio litro O conto “Monstro de rodas” trata dos desdobra- de Chianti Rufino. Parou. Olhou para a garrafa. He- mentos da morte de uma menina atropelada por sitou. Saiu de novo. E trouxe meia Pretinha.”. A se- um automóvel. qüência de ações coordenadas informa concreta- mente o contentamento da personagem, detido en- 1. No trecho selecionado, vemos personagens e te- fim pelo hábito ou a necessidade de economizar; re- mas comuns no conjunto da obra Brás, Bexiga e produz-se nas frases, graças à pontuação e ao as- Barra Funda. síndeto, o ritmo do que ocorre e se faz, assim, ver. a) O que se depreende do nome da maioria das Nesses exemplos, nota-se que a construção das personagens? personagens decorre de uma alternância eficaz en- b) Como se concretizam, nesse fragmento, os tre o contar e o mostrar: no lugar da adjetivação tra- temas da pobreza e do sonho de ascensão? dicional, são os fatos e dados concretos que as carac- c) Considerado o drama da situação, o que há em terizam, cinematograficamente. comum nos dois diálogos? UNICAMP • 2006 120 ANGLO VESTIBULARES
2. A prosa do autor é marcada por características b) a paciência mal contida de Natale diante de que estavam entre as principais bandeiras do coisas que ele já sabia e não queria ouvir. Modernismo, como a frase econômica, enxuta, e c) a crescente impaciência de Natale com as di- o tom coloquial adotado mesmo pelo narrador. gressões do discurso da mulher. Retire do texto exemplos desses dois expedientes. d) a mania de Natale de interromper os relatos de sua mulher. Texto II e) a mania de Dona Bianca de espionar o que A roda de pizza chiava na panela. ocorria no armazém. — Con molte alici, eh dama Bianca! 5. Na conversa reservada do casal, as falas de Dona — Si capisce, sor Luigi! Bianca foram reproduzidas em discurso: Natale entrou. a) direto. — Vem aqui no quarto. b) indireto. Natale foi meio desconfiado. c) direto e indireto. d) indireto livre. — Que é? e) direto e indireto livre. Bianca quando dava para falar era aquela desgra- ça. 6. A informação obtida por Dona Bianca sobre o preço da cebola resultará num negócio um tan- — José Espiridião, o mulato, o do Abastecimento, to canalha mas lucrativo para o casal. Trata-se: ora, o da Comissão do Abastecimento… — Já sei. a) da compra a bom preço do estoque de um … estava ali no quintal assistindo a uma partida de comerciante vizinho desavisado. bocce. Conversando com o Giribello, o sapateiro, o pai b) de um golpe aplicado no pessoal da Comis- da Genoveva… são do Abastecimento. — Já sei. c) de chantagem contra José Espiridião, com Pois é. Ela ficou ali espiando o bocce porque era a ajuda de Giribello. vez do Nicola jogar. E como o Nicola já sabe é o cam- d) da sedução de José Espiridião por Dona Bianca, peão e estava num dia mesmo de… para obter cebola barata. — Sei! e) da compra de informações mais detalhadas, Pois é. Ela ficou espiando. E também escutando o com o suborno de Espiridião. que o Espiridião estava dizendo para o Giribello. Não é que ela fazia questão de escutar o que ele falava. Não. Texto III Mas ela estava ali perto — não é? — então… — SEI! “(…) No fundo o imponente castelo. No primei- O Espiridião falava assim para o Giribello que a ro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. crise era um fato, que a cebola por exemplo ia ficar Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso pela hora da morte. O pessoal da Comissão do Abas- ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do tecimento andava até… castelão inimigo de capacete prateado com plumas — SEI! brancas. E atravessada no ginete a formosa donzela Ela então não quis ouvir mais nada. desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de ca- rambola.” (“Armazém Progresso de São Paulo”) (A. de Alcântara Machado, “Carmela”) 3. Nessa passagem, o espaço em branco entre as duas partes aponta graficamente: Texto IV a) a mudança de interlocutores, com a entrada de Natale. “(…) Íamos, se não me engano, pela rua das Man- b) o tempo consumido pelo casal para deslocar-se gueiras, quando voltando-nos, vimos um carro elegan- de um espaço (a cozinha) a outro (o quarto). te que levavam a trote largo dois fogosos cavalos. c) a mudança de assunto na história, encerrado Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma o preparo da pizza. senhora idosa, se recostava preguiçosamente sobre o d) a introdução no enredo de uma nova persona- macio estofo e deixava pender pela cobertura derrea- gem — José Espiridião. da do carro a mão pequena que brincava com um le- e) a ocorrência de fatos concomitantes em espa- que de penas escarlates.” ços diferentes. (José de Alencar, Lucíola) 4. A repetição de “Já sei”, seguida de “Sei!” e “SEI!” 7. (FUVEST/95) — Nesses excertos (textos III e IV), informa sobre: observa-se que a maioria dos substantivos são a) a grosseria do marido “carcamano” para com modificados por adjetivos ou expressões equiva- sua mulher. lentes. UNICAMP • 2006 121 ANGLO VESTIBULARES
Comparando os dois textos, c) faz uma sátira às raças que constituem a nacio- a) aponte em cada um deles o efeito produzido nalidade brasileira: a que estava aqui, a que por tal recurso lingüístico; veio nas caravelas e nos porões dos navios e a b) justifique sua resposta. que os transatlânticos trouxeram da Europa. d) descreve a Europa em situações vividas pelo 8. (PUC/99) Alcântara Machado faz a seguinte apre- português, pelo espanhol, pelo italiano, pelo sentação para Brás, Bexiga e Barra Funda em francês, etc., num cenário móvel consoante a Artigo de Fundo: rapidez turística da viagem do autor. Este livro não nasceu livro; nasceu jornal. Estes e) busca, no tema do homem brasileiro, o recor- contos não nasceram contos: nasceram notícias. te paulistano da família bandeirante, de raízes E este prefácio portanto também não nasceu pre- históricas e de tradições sociais. fácio: nasceu artigo de fundo. Dessa apresentação, pode-se concluir que 11. Em Brás, Bexiga e Barra Funda, o elemento a) os jornais brasileiros da época eram determi- negro, embora esteja presente no prefácio (“Ar- nantes absolutos das vanguardas artísticas e tigo de Fundo”) e em seis dos onze contos, em a literatura sofreu essa determinação. geral comparece como figurante e é retratado b) o livro referido transformou-se em jornal, ou em tom francamente preconceituoso — como em melhor, houve uma transposição dos fatos e das “Saem à rua suja de negras e cascas de amen- personagens do mundo real para o literário. doim” (“Carmela”); “Mulatas de vestidos azuis c) o livro em questão é jornalístico, porque está ganhavam beliscões. E riam.” (“Corinthians (2) preocupado em dar opiniões sobre as notícias Vs. Palestra (1)”); “— Dá aí duzentão de cachaça. da comunidade. O negro fedido bebeu de um gole só. Começou d) a linguagem do livro de Alcântara Machado, a cuspir.” (“Armazém Progresso de São Paulo”). ao aproximar-se jornalisticamente do cotidia- Apenas dois mulatos ganham voz: Tibúrcio, em no, afasta-se dos meios literários modernistas “O monstro de rodas”, e José Espiridião, em de sua época. “Armazém Progresso de São Paulo”. e) o livro está impregnado de uma atmosfera de a) Ambas as personagens, em suas falas, comen- reportagem, aproximando-o do jornal por cap- tam aspectos da realidade brasileira como se a tar o fato, o instantâneo da vida cotidiana. apresentassem a seus respectivos interlocuto- 9. (UNICAMP/2003) O conto “Gaetaninho” começa res italianos. De que aspectos se trata? com a fala — “Xi, Gaetaninho, como é bom!”, e b) Tibúrcio “cabala” votos para as eleições muni- termina com a seguinte afirmação: “Quem na cipais; José Espiridião trabalha na Comissão boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia do Abastecimento (e é tratado de “seu dou- soberbo terno vermelho que feria a vista da gente tor”). Relacione esses dados à proximidade era o Beppino”. (António Alcântara Machado. dos dois mulatos com os italianos com quem “Gaetaninho”, in Brás, Bexiga e Barra Funda. Belo dialogam, em contraste com o tratamento da- Horizonte/Rio de Janeiro, Villa Rica Ed. Reu- do no livro às outras personagens de origem nidas, 1994.) negra. A fala inicial é de Beppino, mencionado também no último parágrafo. Texto V a) A que ele se referia como sendo bom? Saiu do Grupo e foi para a oficina mecânica do b) Ambos os trechos citados têm relação direta cunhado. Fumando Bentevi e cantando a Caraboo. com o núcleo central da narrativa. Que núcleo Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o é esse? Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado pra matar o Juve- c) Que relação há entre os nomes próprios das nil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. personagens e o título do livro? Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esqui- 10. (PUC/2002) A obra Brás, Bexiga e Barra Funda, na o tesoureiro. O tesoureiro não apareceu. Estreou as de António de Alcântara Machado, foi escrita em calças compridas no casamento da irmã mais moça 1927. Dessa obra como um todo é possível afir- (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina. Apanhou mar que do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a em- a) configura a vida do imigrante italiano e do pastelar o FANFULLA que falou mal do Brasil. Teve ítalo-brasileiro, em processo de aculturação ambições. Por exemplo: artista do circo Queirolo. Quase na cidade de São Paulo. morreu afogado no Tietê. b) representa a caricatura do brasileiro classe mé- E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (na- dia, homem da cidade, vivendo momentos de morada do Lingüiça) casou com um chofer de praça na revolta e indignação, arroubos de patriotismo e polícia. comicidades cotidianas. (“Tiro-de-guerra nº 35”) UNICAMP • 2006 122 ANGLO VESTIBULARES
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