DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA

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DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA
Aramis Ribeiro Costa
                                           Cadeira 12 Patrono: Miguel Calmon,
                                                    Marquês de Abrantes
                                        Fundador: Miguel Calmon du Pin e Almeida
                                           2o. Titular: Alberto Francisco de Assis
                                              3o. Titular: Afonso Rui de Souza
                                            4o. Titular: Itazil Benício dos Santos
                                         Titular atual: Aramis de Almada Ribeiro
                                                             Costa
                                                    Posse em 25.11.1999

        DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA

                             Aramis Ribeiro Costa

      Senhores Acadêmicos:

       O menino via esta Casa na distância do desconhecido e do impossível.
Nela habitavam vultos — nada mais que vultos — etéreos, formidáveis,
inatingíveis como figuras irreais de contos de fada, ou como deuses de um outro
Olimpo, cujas escarpadas encostas, à semelhança da mitológica montanha de
Zeus, tornavam-no inacessível aos simples mortais. Era assim que via esta
Casa aquele menino que amava os livros e as histórias, e que sonhava —
porque já nascera sonhando isto, aquele menino — e que sonhava ser escritor.
A casa — a estrutura física — não era esta, os vultos, os deuses que a
habitavam não eram os mesmos que hoje a habitam. Erguia-se em vetusto
sobrado no Terreiro de Jesus, no antigo Pátio do Colégio e cenário das antigas
cavalhadas que um dia o jovem acompanhou, maravilhado, nas páginas d’As
Minas de Prata, de José de Alencar. Não era esta, a casa, a estrutura física, não
eram os mesmos os seus habitantes, e, no entanto, era esta mesma Casa,
porque era o mesmo o espírito que a animava, sob a égide do mesmo nome de
três palavras mágicas: Academia de Letras da Bahia. Academia, Letras, Bahia.
As palavras Letras e Bahia, encerravam, para o menino, o encontro e a
concordância de dois amores que já existiam nele muito fortes: a literatura e a
sua terra. Os habitantes daquela Casa — o pai dizia isto ao menino — eram os
imortais da Bahia. E o menino, como se sonhasse um desses sonhos
impossíveis e paradoxalmente plausíveis nas mentes infantis, desejou, desejou
muito, ser um imortal da Bahia. Mas o que vinha a ser um imortal, se todos os
homens morrem? A resposta a esta pergunta, o menino só veio a formular bem
mais tarde, quando o seu conhecimento da vida e da morte, da arte e da
imortalidade, já lhe permitiam estabelecer um conceito, ainda que apenas um
conceito. Bem maior que o interesse por aquela Casa que ele via distante e
desconhecida, era o interesse pelas histórias que os avós, o pai, a mãe, o tio
lhe contavam, o encantamento pelos livros das gravuras coloridas, o deleite
daquele mundo de fantasia que o tornava realmente feliz.

       Aqueles livros... Eram o seu presente preferido, o seu encanto maior. Aos
sábados, pela manhã, o pai levava-o à livraria Civilização Brasileira da Rua
Chile — a mesma que seria consumida pelas chamas de um dos muitos
incêndios que vitimaram a cidade naquele tempo —, e o menino corria para o
fundo, para a prateleira dos livros infantis. E, diante do pai, orgulhoso e
satisfeito do interesse do filho, escolhia os seus novos livros. Em pouco tempo
estava íntimo daqueles autores: Lewis Carroll, Andersen, Perrault, irmãos
Grimm, Condessa de Segur, La Fontaine, Collodi, sem falar das adaptações, tão
em voga na época, dos livros famosos, como As Mil e Uma Noites, Robinson
Crusoe e As Aventuras do Barão de Munchausen. E Monteiro Lobato. Que
deslumbramento! Descobrir Lobato foi, para aquele menino, descobrir um
mundo. Os livros deste escritor ele nem precisava comprar, porque o tio os
possuía todos, em obra completa luxuosa, de capa dura e letras douradas, que
ficava separada, numa pequena estante, em meio a uma imensa biblioteca que
era, também, um dos encantos do menino. Um dia, aos doze anos de idade, de
tanto ouvir o pai e o tio falarem dos mosqueteiros — de um dos quais, o
preferido do pai, vinha o seu nome —, aventurou-se nas páginas mágicas e
febris de Alexandre Dumas. Montado à garupa do pangaré amarelado de
D’Artagnan, percorreu, deslumbrado, os caminhos da França de Luis XIII, Ana
D’Áustria, Richelieu, Mazarino, do Rei Sol e do esplendor de Versailles. E leu,
às escondidas, porque não sabia se já podia ler um livro tão ousado, A Relíquia,
do grande Eça. O criador de Teodorico e da inefável Titi, de Amaro e de Amélia,
de Basílio e de Luísa, do conselheiro Acácio e do fidalgo Ramires seria, para
sempre, um dos seus preferidos.

      Os autores dos livros que ele amava estavam mortos há muito tempo. E,
no entanto, ali estavam, vivos, nas suas histórias e nos seus personagens. E o
menino via que eles não tinham morrido, que não iam morrer porque
continuariam a ser lidos por outros leitores depois dele, e que, por isto, eram
imortais. E percebeu que a imortalidade da obra faz a imortalidade da vida. Mas
ainda não era esta a propalada imortalidade da Academia. A imortalidade
acadêmica — não o menino, mas o escritor adulto, em relação com a vida
literária, veio a entender mais tarde —, resulta da perpetuação da memória do
acadêmico pelos confrades que a ele sobrevivem, e pelos confrades que o
sucedem. É como uma corrente que se perpetua nos novos elos que vão sendo
acrescidos e que têm por obrigação protocolar e ética reverenciar os que o
antecederam.

      Senhores Acadêmicos:

       A Cadeira nº 12, para a qual me destinastes nesta Casa, tem como
patrono, bem o sabeis, uma figura do Império: o santamarense Miguel Calmon
du Pin e Almeida, Visconde, depois Marquês de Abrantes. A feliz coincidência!
De Santo Amaro da Purificação, em cujos canaviais, em cujas terras de
massapê, em cujo leito barrento do rio estão fincadas as mais fundas raízes da
minha família paterna, é que me vem o patrono, um dos mais nobres filhos da
“Leal e Benemérita” do Recôncavo baiano, como se com isto a própria Cidade
de Santo Amaro me viesse, e com ela me viessem os meus que já se foram,
para sentarem comigo à Cadeira nº 12, para comigo sentarem em vossa
companhia! Deixai-me citar, por ser patrono de Academia de Letras, alguns de
seus livros: Cartas Políticas de Américus, Memória Sobre os Meios de Promover
a Colonização, Ensaio Sobre o Fabrico do Açúcar, e A Missão Especial, em dois
volumes, onde, no dizer de Pedro Calmon, seu biógrafo, “descrevia a Prússia, o
milagre alemão, o aparelhamento de um império, cuja grandeza antevia”. Bem
recebidos e bem conceituados à sua época, não se poderia entretanto creditar a
estes escritos o prestígio do seu nome. O Marquês de Abrantes foi uma das
mais ilustres e expressivas personalidades da política e da economia do
primeiro e do segundo reinados. Deputado, ministro da Fazenda por três vezes,
ministro dos Estrangeiros, senador e conselheiro do Estado, marcou de forma
indelével, competente e elegante, a sua presença no cenário daquele Brasil de
dois admirados monarcas.

       Compreensível, portanto, que, ao ser convocado para a fundação da
Academia, o segundo Miguel Calmon du Pin e Almeida lembrasse do parente
famoso e homônimo para patrono da sua cadeira. Aliás, há semelhanças de
atividade entre estes ilustres membros da família Calmon, o patrono e o
fundador da Cadeira nº 12. Baiano de Salvador, o fundador Miguel Calmon foi
engenheiro, professor da Escola Politécnica da Bahia, secretário da Agricultura,
Viação e Obras Públicas neste Estado, deputado federal por três mandatos não
consecutivos, ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas do presidente
Afonso Pena, ministro da Agricultura, Indústria e Comércio do presidente Artur
Bernardes, e, finalmente, senador pela Bahia. Entre os seus trabalhos
publicados, que o colocam na mesma linhagem de escrita do patrono,
encontram-se Aplicações Industriais do Álcool, Fatos Econômicos, e Tendências
Nacionais e Influências Estrangeiras.

       Sucedeu-o um professor e filantropo: Alberto Francisco de Assis. Como o
patrono e o fundador, igualmente não foi um literato. Mas foi um homem de
letras, por praticar a escrita didática. Era um estudioso da pedagogia e da
História do Brasil, disciplina que ensinava. Sendo um professor primário,
formou-se mais tarde em Direito e manteve-se professor. Lecionou na Escola
Noturna da Vitória, no Instituto Normal da Bahia, do qual foi diretor, no Instituto
Baiano de Ensino, que também dirigiu, no Educandário dos Perdões, no Colégio
das Mercês, no Colégio da Soledade e nas Sacramentinas. Homem de espírito
e de ironia fácil, era reconhecidamente um homem bom, voltado para os amigos
e com uma profunda preocupação social, em particular para com as crianças
deficientes visuais e carentes, interesse que o levaria a fundar o Instituto de
Cegos da Bahia, mais tarde justamente chamado Instituto Alberto de Assis.
Entre os seus trabalhos didáticos publicados em forma de livro, estão Vultos e
Datas do Brasil, Nos Degraus da História e Fé e Civismo, este último alentado
volume que alcançou nada menos que seis edições e mais de dez mil
exemplares vendidos.

       A ele sucede Affonso Ruy de Souza. Aqui a bibliografia é vasta e densa,
impregnada toda ela de larga e funda baianidade, que se traduz sobretudo nos
costumes e na história. Dão-se as mãos o teatrólogo e o historiador, fundidos e
confundidos em inquestionável amor pela Bahia. Affonso Ruy assume a Cadeira
nº 12 aos quarenta e oito anos de idade, com nome e obra feitos. Trazia, na
bagagem do teatrólogo, além de uma fecunda atuação no teatro baiano, como
ator, diretor, produtor e professor, dezenove textos teatrais, quinze deles já
levados à cena. Ao recebê-lo em nome da Academia, Aloysio de Carvalho Filho
cita, com louvores, dois de seus trabalhos como autor teatral: Flor do Vício, a
primeira peça a ser escrita, aos vinte e dois anos de idade, e A Quinta Coluna,
última a ser produzida antes do seu ingresso nesta Casa. Itazil Benício dos
Santos, ao sucedê-lo, iria lembrar, além de Flor do Vício, Uma Aventura, Por
Meu Filho, Gente da Rua e Lolita. Affonso Ruy publicaria, ainda, como estudioso
de teatro, resumida porém preciosa História do Teatro na Bahia, do século XVI
ao XX. Mas o historiador superaria, para a posteridade, o teatrólogo. Alguns de
seus livros tornaram-se de referência a todos aqueles que estudam e produzem
sobre a História da Bahia, particularmente a História da Cidade do Salvador.
Dois deles, A História Política e Administrativa da Cidade do Salvador e a
História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador, encontram-se
circunstancialmente vinculados aos festejos do quarto centenário desta cidade,
o primeiro por ter sido publicado em 1949, e o segundo por ter merecido, por
concurso, o Prêmio Cidade do Salvador, instituído pela Câmara dos Vereadores
da Capital, como parte das comemorações dos quatro séculos. São ambos
magníficos e alentados trabalhos de reconstituição histórica da cidade, da
fundação aos primeiros anos da República. Destacaria ainda A Primeira
Revolução Social Brasileira — 1798, uma observação precisa e abrangente do
caráter social e reformador na sedição baiana, em cujo infeliz desfecho se fez
erguer a forca na Piedade. Ali está a visão hoje aceita e amplamente estudada,
dos verdadeiros motivos da Conspiração dos Búzios, princípios que vinham dos
ideais revolucionários franceses de “liberdade, igualdade, fraternidade”. Desta
maneira, no palco e nos livros, no teatro e na história, Affonso Ruy mostrou-se
fiel ao compromisso assumido no seu discurso de posse na Cadeira nº 12,
quando, ao lembrar o lema desta Casa, “Servir à Pátria honrando as Letras”,
comprometeu-se antes de tudo em “honrar a Bahia, servindo às letras”. Serviu
às Letras, honrou a Bahia, serviu à Pátria, honrou as Letras.

        Uma tradição secular da Bahia é a dos médicos que escrevem, que
amam a literatura, e que dividem o tempo das suas vidas entre a “arte de tratar
ciência de curar” e a arte das letras. Não vos falo de médicos que, exercendo a
profissão, ganharam fama e prestígio por serem escritores, a exemplo de
Tchekhov, Cronin, Macedo, Guimarães Rosa, Jorge de Lima, e, na Bahia,
Afrânio Peixoto — embora a fama deste se devesse também à medicina. Falo-
vos de um espírito, de uma tendência da velha Faculdade de Medicina da
Bahia, a Faculdade do Terreiro que hoje felizmente renasce de inadmissíveis
escombros. Esse espírito, essa tendência, fez da primeira faculdade de
medicina do Brasil, do mais importante núcleo de ensino das ciências médicas
do país, um respeitado centro de cultura em todo o século passado até meados
deste. Os lentes da velha faculdade eram, antes de tudo, homens de vasta
formação humanística, que não se limitavam à ciência que ensinavam aos
alunos e praticavam nos consultórios e nos hospitais, transitando, com a mesma
desenvoltura e o mesmo apaixonado interesse pela filosofia, pela sociologia,
pela história, pela antropologia e, sobretudo, pela literatura. Não foram poucos,
entre eles, os grandes oradores, a transformarem as suas aulas em eloqüentes
exibições de oratória, em cujo final eclodiam os aplausos dos discípulos
entusiasmados. Os relatórios médicos, as conferências, os estudos científicos,
os artigos na imprensa desses doutores da medicina, não desleixavam da
linguagem e do estilo, não desdenhavam das metáforas, não escondiam o gosto
literário. Pedro Calmon, em sua História da Literatura Baiana, dedica-lhes todo
um capítulo, onde não falta uma extensa relação de teses, cujos títulos — vários
deles — denunciam temas bem mais literários que médicos ou científicos, e
Jorge Amado os recria ficcionalmente em Tenda dos Milagres. Porém a maior
evidência desse espírito literário da velha Faculdade de Medicina da Bahia,
encontra-se nesta Casa. No quadro dos fundadores, havia um professor e
industrial tipográfico, um presbítero, dois jornalistas, dois professores primários,
quatro engenheiros, quinze juristas e dezesseis médicos, entre eles Braz do
Amaral, Carlos Chiacchio, Pirajá da Silva, Carneiro Ribeiro, Egas Moniz Barreto
de Aragão, o Péthion de Villar, Gonçalo Moniz, Clementino Fraga e Afrânio
Peixoto. Daí por diante, não faltaram médicos ilustres entre os acadêmicos,
como Estácio de Lima, César de Araújo, Adriano Pondé, Alberto Silva,
Magalhães Neto, Hélio Simões, Macedo Costa e Thales de Azevedo. No quadro
atual da Academia, os médicos que exercem a medicina, que se notabilizam na
medicina e cultuam as letras, aqui estão entre vós, tão dignamente
representados, pelos doutores José Silveira, Roberto Santos e Jayme de Sá
Menezes.

       É na esteira dessa tradição baiana e antiga, nascida no mesmo Terreiro
de Jesus onde, por longos anos, viveu a própria Academia, que chega a esta
Casa, no início dos anos setenta, o meu antecessor imediato, Itazil Benício dos
Santos. Foi meu professor de radiologia no curso médico, era meu colega e meu
amigo. A sua lembrança ainda é muito viva. Vejo-o alto, esguio, elegante, com a
serenidade que a sabedoria confere aos cientistas, eles que mais sabem dos
riscos e desacertos da pressa. Não me recordo de tê-lo visto, alguma vez,
exaltado, a erguer a voz ou exagerar os gestos. Itazil era o mesmo homem
educado e aparentemente tranqüilo, nos corredores dos hospitais e nos salões
da Academia, diante de um negatoscópio ou em meio a uma discussão literária.
Com o mesmo sereno entusiasmo, mas com firmeza e competência, explanava
sobre uma imagem radiológica de condensação, num campo pulmonar, ou
sobre os traços de uma personagem, num romance de Proust ou de Jorge
Amado. Ao falar do momento supremo da descoberta dos raios X, seus olhos
brilhavam, recriava o episódio sem fugir à verdade histórica, porém com cores e
tons de ficcionista, Roentgen, nas suas palavras, tornava-se um interessante
personagem. Verdade que, em sua vida, em seus ideais, Itazil pendia mais para
a ciência de Hipócrates que para a arte de Homero. Especialista e doutor em
radiologia; primeiro professor titular de radiologia em faculdade de medicina
federal no país; examinador de concursos; membro e dirigente de sociedades,
conselhos e congressos nacionais e internacionais de radiologia; radiologista
conceituado e de enorme clientela; e autor de mais de uma dezena de
importantes trabalhos científicos, todos ligados à sua especialidade. Esses
trabalhos, foram devidamente registrados e enaltecidos pelo seu sucessor na
Academia de Medicina da Bahia. Ao sucedê-lo nesta cadeira de letras, embora
seu colega na profissão médica, cabe-me lembrar seus escritos literários: Vida e
Obra de Manuel de Abreu — o Criador da Abreugrafia; Vultos e Fatos da
Medicina Brasileira; Vida e Obra de Pirajá da Silva; Através do Tempo,
coletânea de artigos e crônicas publicados em jornais e revistas; Itinerário de
Ideais e Compromissos; e Jorge Amado — Retrato Incompleto.

       A biografia e o ensaio eram a sua especialidade nesta área. Em Jorge
Amado — Retrato Incompleto é onde mais Itazil se afasta da medicina,
voltando-se, inteiramente, para a literatura. Trabalho de extrema dificuldade!
Jorge Amado atravessa o século derrubando preconceitos, alargando limites de
linguagem e de tema na literatura, combatendo injustiças sociais,
discriminações de raça e de religião, criando histórias, povoando o imaginário
do mundo com personagens e cenas da Bahia, povo e terra, denúncia, encanto
e magia. Sozinho, vale toda uma literatura. Andou por toda parte, tornou-se
cidadão do mundo, lido e amado em todas as línguas. Como retratar esse
capitão de longo curso, que diz fazer apenas uma navegação de cabotagem?
Mas Itazil deixa-nos, ao final da leitura do seu livro, a admirada sensação de
uma dificílima tarefa bem executada. Num estilo cativante e fluente, que nada
recorda um sisudo cientista da radiologia, passeia pela vida, pelos romances,
pelos personagens, pelas entrevistas de Jorge Amado, coloca-o inteiro e vivo
nas suas páginas, traçando-lhe, na verdade, num primoroso ensaio bio-
bibliográfico, um dos mais completos retratos do nosso maior escritor. Itazil
Benício dos Santos, em tudo que fez, em tudo que escreveu, deixou-nos um
legado de dedicação, integridade e competência.

       Como os autores preferidos da minha infância, estes vultos evocados,
patrono, fundador e ocupantes da Cadeira nº12, estão mortos. Entretanto aqui
estão redivivos nesta cerimônia de posse, como vivos encontram-se nas
sessões de saudade, nos números da Revista onde deixaram os seus escritos,
nas palestras, nos cursos, nas publicações, na biblioteca, no arquivo, estão
vivos em cada uma das atividades desta Casa, e vivos permanecerão para
sempre na memória da Academia, das Letras e da Bahia. Vejo, desta forma, a
imortalidade acadêmica, mantida nos preceitos estatutário, protocolar e
sobretudo ético, que este palácio de cultura abriga e cultua.

       Não poderia, aliás, uma instituição como esta, viver sem memória, como
não poderia existir sem fitar longe e largo o futuro. Passado, presente e futuro
visavam os fundadores, naquela noite de 7 de março de 1917, quando, na sala
de sessões da antiga Câmara dos Deputados, na Ladeira da Praça, Arlindo
Fragoso os reuniu, excluindo-se modesta e dignamente da lista de quarenta
nomes que ele próprio elaborara. Ali plantavam-se os fundamentos, ali
estabelecia-se o alicerce sobre o qual seria erguido o sólido edifício. O quadro
dos primeiros quarenta traduzia, inegavelmente, o que havia, na época, de mais
representativo na literatura, no saber e no prestígio político da Bahia. Ruy
Barbosa, Artur de Sales, Bernardino de Souza, José Joaquim Seabra, Severino
Vieira, Simões Filho, Teodoro Sampaio, Xavier Marques, Octávio Mangabeira,
eram alguns outros desses nomes, além dos aqui citados.

       Oitenta e dois anos depois, vejo-vos, Senhores Acadêmicos, como no
tempo dos fundadores, acima das ideologias políticas, acima das escolas,
tendências ou gostos literários, acima das crenças e descrenças religiosas,
representantes estelares da Academia, das Letras e da Bahia. Na ficção,
encontro Jorge Amado, Wilson Lins, Luís Henrique Dias Tavares, James Amado
e Hélio Pólvora, o mestre baiano do conto, que me honra ao me receber nesta
Casa em vosso nome. Na poesia — esta deusa maior das letras baianas —
encontro Oldegar Franco Vieira, Myriam Fraga, Epaminondas Costalima, João
Carlos Teixeira Gomes, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos e Clóvis
Lima, meu grande e querido Clóvis Lima que há tantos anos me deseja em
vossa companhia. Na história — sobretudo na pesquisa dos vultos e fatos que,
em nossa terra, construíram a civilização brasileira, — encontro Anna Amélia
Vieira Nascimento, Waldir Freitas Oliveira, Cid Teixeira, José Calasans,
Waldemar Mattos, Walfrido Moraes e Consuelo Novais Sampaio. No folclore e
nos costumes Hildegardes Vianna. No ensaio, na biografia e na memória,
Jayme de Sá Menezes, José Silveira, Pedro Moacir Maia, Cláudio Veiga, João
Eurico Matta, Gerson Pereira dos Santos e Rubem Nogueira. Na oratória, esta
arte baiana de quatro séculos, a voz santamarense de Monsenhor Gaspar
Sadoc e a eloqüência parlamentar e acadêmica de Josaphat Marinho. No
jornalismo a ética e o talento de Jorge Calmon, de Cruz Rios e de Ari
Guimarães. Nos estudos da educação, Edivaldo Boaventura. No patrimônio
Paulo Ormindo de Azevedo. Na política, Antônio Carlos Magalhães e Roberto
Santos. E na religião, mas sem deixar de ser escritor, D. Lucas Moreira Neves,
bispo e cardeal de Roma. Assim vos vejo, nos atributos que vos fizeram
pertencer a esta Casa, mas vejo-vos também irmanados nas perdas inevitáveis
da instituição, perdas que a entristecem, mas que lhe dão maiores motivos de
prosseguir, na guarda perpétua da memória dos que partem. E aqui inscrevo,
para preservá-los também nesta oração festiva de posse, como os guardarei na
lembrança permanente da amizade, os nomes de Renato Berbert de Castro e de
Carlos Eduardo da Rocha.

       Cabe-me a tremenda responsabilidade de ser o primeiro da minha
geração a entrar nesta Casa, o primeiro a assumir o compromisso de continuar
as tradições octogenárias e perenes deste sodalício. Vejo nesta circunstância
apenas um acaso, aqui poderiam estar muitos outros com mais brilho e com
mais mérito, mas a circunstância fortuita de ser o primeiro, obriga-me a falar,
neste momento, por todos os outros.

       A minha geração, Senhores Acadêmicos, é aquela que foi às ruas, não
de caras pintadas e quase em festa, com o apoio da imprensa e a concordância
do povo, incentivada por políticos poderosos e com a proteção da polícia e até
do Exército, mas aquela que saiu às ruas de peito aberto para enfrentar as
balas dos fuzis, os cães treinados, as bombas de gás lacrimogênio; aquela que,
num dos períodos mais sombrios da história política brasileira, num dos
momentos mais duros e arbitrários da história deste país, arriscou a vida pela
liberdade de pensamento, pela liberdade de expressão, pela democracia. Vi
amigos serem presos, e nunca mais os vi, soube de torturas, presenciei colegas
de colégio serem expulsos, e terem suas vidas, certamente luminosas,
inteiramente apagadas. Mas, apesar disto, a minha geração não deixou de
acreditar no país, não deixou de acreditar em si própria, não permitiu que lhe
extinguissem os ideais sagrados da juventude, não permitiu que lhe subtraíssem
a esperança. Pertenço à geração que, em meio a todas as turbulências e
adversidades, a todos os cerceamentos e censuras, não parou de criar, e que
fez das artes e da literatura um sólido escudo na defesa da inteligência, da
cultura, da beleza e da liberdade, contra a opressão e a brutalidade política. Às
armas que nos apontavam, às ameaças, respondíamos com festivais de música
popular que atraíam e empolgavam multidões, com peças de teatro em parte
censuradas, quando não inteiramente proibidas, com poemas e contos
publicados em revistas estudantis, com novelas e romances que os próprios
autores editavam. Pertenço, Senhores Acadêmicos, à geração que participou
dos últimos anos gloriosos do grande Colégio da Bahia, forja e celeiro da cultura
da juventude baiana até o final dos anos sessenta. Sem perder de vista os
acontecimentos políticos, sem deixar de lutar pelos princípios de liberdade nos
quais acreditávamos, não esquecíamos, no centenário Colégio, a filosofia, a
história, a música, a literatura. Nos intervalos das aulas, nos corredores, nos
pátios, nos bancos de cimento à volta das velhas árvores, discutíamos
Graciliano Ramos, Adonias Filho, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico
Veríssimo, Rachel de Queiroz, falava-se, com entusiasmo, em Hemingway,
Huxley, Sartre, Hermann Hesse, os mais eruditos citavam Joyce, Proust e
Kafka.

        É neste cenário de efervescência da juventude, à sombra de uma dessas
árvores e cercado por colegas, que vou encontrar um jovem magrinho, de
óculos, tão falante quanto os outros, tão seguro da sua sabedoria quanto os
outros, e que acreditava ser escritor. Havia razões para isto, na verdade. A sua
sede de escrever era tão grande que, na quarta série de ginásio, aos quatorze
anos, criara um jornal mural semanal, que ele próprio passara a dirigir, apenas
para ali escrever, semanalmente, crônicas e editoriais, a exemplo do que fazia,
no jornal de verdade, o tio jornalista e cronista diário. E, aos quinze anos de
idade, começara a colaborar com aquele mesmo jornal de verdade, A Tarde,
publicando, semanalmente, o que fez durante doze anos, histórias infantis, na
Página Infantil que o tio editava, crônicas, contos e poemas na Página Literária.
Vivia embriagado de literatura. Então, era escritor aquele jovem, e o fato de
escrever em A Tarde — a poderosa A Tarde — conferia-lhe um indiscutível
prestígio literário entre os colegas. Mas era escritor, sobretudo, porque, ainda
que quisesse — e jamais o quis — não podia deixar de escrever, e tinha no
ideal literário, o ideal da sua própria vida.

       O sonho maior daquele jovem era publicar um livro, nada lhe parecia
mais importante do que isto, e sonhava com o seu nome na capa, e sonhava
com o título, o livro, o livro. Reuniu alguns dos contos da Página Infantil de A
Tarde, deu-lhes um título, No País das Aventuras, mostrou ao pai, ao tio, por um
tempo viveu em torno daquela idéia, mas logo um novo projeto empolgou-o: não
mais a estréia com um livro de histórias infantis, porém com um de contos para
adultos. Para ele o gênero não importava — e, na verdade, continuou não
importando. Em literatura, gostava de tudo, interessava-se por tudo, e via — e
continuou vendo — no gênero literário apenas a roupagem da idéia. Cada idéia,
cada inspiração pede um gênero, cabe vesti-la com a vestimenta adequada. O
romance era um objetivo, mas não se sentia, naquele tempo, preparado para
enfrentá-lo, havia que aprender muito, antes de aventurar-se na ficção de largo
fôlego. E atirou-se a produzir contos, um após o outro, escrevendo e
reescrevendo, fazendo e refazendo, varando as noites e as madrugadas, os
domingos e os feriados, na sua máquina portátil Olivetti Lettera 22, que o pai lhe
dera nos seus quatorze anos, e que fora o melhor presente que ele lhe dera, de
todos os muitos presentes que lhe deu. Escrevia e reescrevia porque era
obcecado pela mais alta qualidade do texto, achando que podia sempre fazer
melhor, e cada vez que reescrevia percebia que era possível, sim, era possível
fazer melhor, sempre melhor, e, um dia, com trinta histórias datilografadas e
postas num classificador de papelão, acreditou que tinha, finalmente, o seu livro
de contos. Deu-lhe o título do primeiro, “A Moça Triste”, um conto que, depois,
de tanto ser reescrito, acabou sendo perdido, como esse próprio livro, que
jamais foi editado. Mas não parou de escrever contos, como não parou de
escrever e publicar histórias e fábulas na Página Infantil, e tocado pelas paixões
e sentimentos da juventude, tão exacerbados e tão verdadeiros, escrevia
também poesias, tempo houve em que escreveu bem mais poesia do que ficção.

       O livro A Moça Triste, na verdade, não seria inteiramente perdido, alguns
dos seus contos, reescritos muitos anos depois, seriam aproveitados. Mas
foram, aqueles trinta contos da juventude, um importante aprendizado não
apenas para o gênero, mas para a própria escrita. Entretanto o primeiro livro,
publicado vários anos depois, aos vinte e quatro anos de idade, um mês antes
da formatura em medicina, seria de poesia: Quarto Escuro, uma seleção de
cinqüenta poemas.

        Aquele moço escritor, de primeiro livro, também via esta Casa na
distância do impossível, embora alimentasse uma secreta e forte esperança de,
um dia, chegar aqui. A Academia apresentava-se aos da minha geração uma
instituição altamente respeitável e respeitada, depositária e guardiã da cultura e
das tradições intelectuais da Bahia, porém inacessível. O secular sobrado do
Terreiro de Jesus abria as suas portas ao público nos grandes acontecimentos,
notadamente nas cerimônias de posse. O mais das vezes mantinha-se fechado
e circunspecto, sendo admitidos apenas, no convívio dos acadêmicos, as
personalidades importantes ou os privilegiados amigos da Casa. Mais tarde é
que viria habitar este belo e espaçoso Palacete Góes Calmon, de magníficos
salões ornados de preciosos azulejos, móveis antigos, telas, biscuits. Então, sob
a serena e firme presidência do Professor Cláudio Veiga, a dinâmica e eficiente
direção executiva de Carlos Cunha, e o carinho e a dedicação de uma dezena
de funcionários integrados ao espírito da Casa, abriria de par em par as suas
portas para os escritores, o público, a vida literária, franqueando a valiosa
biblioteca e o arquivo, promovendo lançamentos de livros, palestras, cursos,
seminários, concursos, publicações, transformando-se no mais prestigioso
centro gerador de cultura do Estado, base e defesa da literatura baiana.

      E não é de pouca importância a presença de uma instituição como esta
na Bahia, sobretudo no contexto do panorama da cultura nacional. O
desenvolvimento, visível, inegável, da cidade e do estado ainda não foi
suficiente para nos libertar de um colonialismo cultural que nos constrange, que
nos limita, que nos insulta. A qualidade dos autores baianos e a produção
baiana de livros, podem ser comprovadas nos lançamentos diários que ocorrem
em Salvador, não raras vezes mais de um por dia. Apesar disto, ainda não
temos as nossas editoras de conexão nacional, que editem os livros dos autores
baianos e os distribuam e os divulguem nacionalmente. A luta pela publicação,
pela divulgação, pela distribuição, pela permanência nas prateleiras das
livrarias, pela venda dos livros, pelo ressarcimento dos livros vendidos, só pode
ser comparada, em pertinácia e força de vontade, à própria vontade de
escrever, à própria necessidade de publicar.

        A circunstância não ocorre apenas à Bahia. Como a injusta distribuição
de renda entre as pessoas deste país, tem sido, também, injusta a distribuição
de cultura entre os estados, ou seja, a oportunidade de gerar, promover,
distribuir e divulgar nacionalmente a cultura entre os estados, como se ainda
fôssemos, culturalmente, um Brasil de corte e províncias. A Bahia, no particular,
tem comprovado não ser uma mera consumidora, mas geradora importante de
cultura, capaz de enriquecer culturalmente os outros estados, bastando, para
isto, que as barreiras da distribuição e da divulgação sejam vencidas. É esta
uma batalha que se trava no dia-a-dia da vida literária da nossa cidade, do
nosso estado. Nesta luta, que é de todos os que escrevem, incorporam-se as
instituições culturais, incorpora-se sobretudo a Academia, justificando o seu
presente, com o mesmo empenho com que cultua o passado e ambiciona o
futuro.

        Para finalizar, manda o protocolo da oração de posse que vos diga algo
sobre o meu trabalho de escritor. Da poesia nada vos digo, que dela nada sei.
Tem sido, para mim, amante infiel e caprichosa, que me surge de repente,
quando menos a espero, e subitamente se vai. Quando chega, curvo-me
submisso aos seus encantos e caprichos, deixo que ela, senhora e soberana,
imponha-me as suas tirânicas vontades. Quando se vai, nada faço para detê-la,
não a persigo, não sigo os seus invisíveis passos, e não me é dado saber se
algum dia retorna. Procuro nela uma qualidade, para vos exibir, e apenas lhe
encontro um grave defeito: o de ser excessivamente indiscreta, expondo-me
inteiro nos seus versos. Da ficção, esta fiel, que jamais me deixou e que espero
jamais me deixe, apenas vos aponto um mérito: o de ter aprendido as lições de
Xavier Marques, de Vasconcelos Maia e de Jorge Amado, fazendo de Salvador
o cenário das minhas histórias. Os meus personagens vivem nas ruas, ladeiras
e largos desta cidade, andam, falam, riem, amam e se aborrecem como baianos,
comem dos pratos da cozinha baiana, são baianos de Salvador. Eu os quero
assim, banhados da luz intensa desta cidade morena e risonha, respirando o
cheiro de mar desta cidade, impregnados do mistério, da preguiça, do dengo, da
poesia e da música desta cidade, mas alimentados da força de quatro séculos e
meio desta cidade. É desta forma que uno estes dois amores da minha vida
inteira, a literatura e a Cidade do Salvador. Ao vos agradecer, comovido, a
honra e o privilégio de pertencer à Academia, vos afirmo a determinação de
prosseguir no caminho que tracei para a minha obra. Para um escritor, mais
importante que o feito é o por fazer, o melhor livro é sempre o próximo, e o
melhor de todos por vezes nem tão próximo, esboçado na idéia e na vontade, à
espera de, um dia, ser escrito.

        Ao me juntar a vós, Senhores Acadêmicos, não vos trago a vaidade e o
orgulho dos que conquistam os lauréis, embora seja esta a mais alta, mais
nobre e mais expressiva láurea que se pode cumular a quem escreve nestas
terras baianas. Trago-vos apenas a enorme alegria daquele menino que amava
os livros e as histórias, e que via esta Casa na distância do desconhecido e do
impossível. Trago-vos o entusiasmo daquele jovem que, ao começar a escrever,
sonhava, dia e noite, em ter um livro publicado. Trago-vos a emoção e as
esperanças daquele moço que, ao publicar o seu primeiro livro, ainda mais
intensamente do que o menino, mais conscientemente do que o jovem, desejou
muito um dia ser um de vós. Trago-vos, finalmente, a afetiva, carinhosa e
reiterada afirmação de que os vossos votos e a vossa confiança trouxeram-me
para a minha Casa. Por tudo isto, Senhores Acadêmicos, por muito mais que
tudo isto, não vos faço um discurso, mas um canto comovido de amor à
Academia, um canto de amor às Letras, um canto de amor à Bahia.
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