No rte meus de dera - Monoskop

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No rte meus de dera - Monoskop
meus    no
 de     rte
dera

       110
DEZEMBRO DE 1922                             JANEIRO DE 1923

k l a x on
REDACÇÃO E ADMINISTRAÇÃO:
                                     MENSARIO DE ARTE MODERNA

                                   S. PAULO — Rua Direita, 33       Sala 5
ASSIGNATURAS - Anno 12$000
                                                  Numero avulso.— 1$000
REPRESENTAÇÃO:
                 RIO DE JANEIRO — Sérgio Buarque de Hollanda
                                 (Rua S. Salvador, 72-A.)
              RECIFE — Joaquim Inojosa (Jornal do Commercio)
               FRANÇA — L. Charles Baudouin (Paris).
                SUISSA — Albert Ciana (Genebra Rampe de Ia Treille, 3).
               BÉLGICA — Roger Avermaete (Antuérpia —
                               Avenue d'Amèrique, n. 160)
A Redacção não se responsabiliza pelas idéias de seus collaboradores. Todos
os artigos devem ser assignados por extenso ou pelas iniciaes. E' permitti-
do o pseudonymo, uma vez que fique registrada a identidade do autor, na
redacção. Não se devolvem manugcriptos.
                        SUMMARIO
íris                                Graça Aranha
Graça Aranha creador de enthusiasmo Ronald de Carvalho
A Esthetica de Malazarte            Renato Almeida
O Psychologo da raça                Motta Filho
Graça Aranha e a critica européa    Rubens de Moraes
Assim elle compõe                   Luiz Annibal Falcão
  . Mormaço                         Guilherme  de Almeida
Noel                                Serge Milliet
Poema abúlico                       Mario de Andrade
Atmosfera                           Guillermo de Torre
Paz Universal                       Carlos Alberto de Araújo
Projectos                           Luiz Aranha
A extraordinária historia da mulher
     que ficou infinita             A. C. Couto de Barros
La poésie moderne a-t-elle besoin
     d'une nouvelle technique?      Nicolas Beauduin
Réviviscences                       Charles Baudouin
CHRONICAS:
LIVROS E REVISTAS
CINEMA
LUZES E REFRACÇÕES
EXTRAS TEXTOS DE TARGILA AMARAL e VILLA-LOBOS.
^H

                          I1TS
d
          esejo da Terra: arvore!             Vida secreta. Pedras humldas. Limos,
                Espiritualidade da Terra:     artistas subtls. Roseos troncos verdes.
             arvorei                          Céo humldo.
                Elegância, força, doçura,        A arvore e a água. Perenne selva. A
             fragilidade, eternidade. Fo-     água mysterlosa que mora no intimo da
 lhas: adorno e sentimento. Galhos: de-      arvore e a que mora nas ceilulas huma-
 fesa, amparo, agasalho, aspiração, ele-      nas. Integração.
 vação para o Infinito.                          Vida profunda. Intelllgencla buscan-
    Postura da arvore: adoração perpe-        do na Terra a vida.
tua, trágica immobil idade. Silencio.            Humanlzação. Arvores disciplinadas,
Campo deserto, arvore solitária. Mon-        dominadas. Revolta, violência. Vingan-
tanha espectral, arvore, phantasma al-       ça. Venenos. Segredos dos vegetaes. So-
lücinado.                                     lidariedade. Unidade verde.
    Arvore e vento. Inútil gemido. In-           Desterro da arvore. Saudade. Nostal-
fatigavel açoute.                            gia.
    Arvore e sol. Febril exaltação de aro-       Culto. Religião. Melancolia. Amiza-
mas. Resinas. Quietação. Adormeci-           de. Confidencia e consolo. Romantismo.
mento da natureza na volúpia do per-             Velha arvore. Parasitas, cipós. En-
fume.                                        feite, protecção. Velha arvore se des-
   Madrugada da arvore. Cantos de al-        faz em pó. Transfiguração universal.
vorada. Clarins, flautas, zumbidos. Ale-     Alegria de renascer.
gria, alegria. Fim de sombra.                    E o Homem, possesso da loucura do
   Nocturno. Gargalhadas. Aves zombe-        movimento, mata na Arvore o repouso
teiras. Rhetorica do pavor. O que a ar-      e a eternidade.
vore vé á noite.                                Floresta das Paineiras, Outubro 1922
   Suave humidade. Pérfida humldade.                           GRAÇA ARANHA.

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a
          obra de Graça Aranha é feita         Mas não se contenta com a belleza
          á imagem e semelhança do          exterior, a innocente beleza dos olhos
          Brasil. Palpitam nella, desde     ingênuos. Desce e aprofunda-se no
          aquelle primeiro grito de êx-     seio da Terra. Ao riso numeroso da su-
          tase ante a formosura do am-      perfície mistura a lagrima silenciosa do
biente natal, que foi Ghanaan, a exube-     abysmo. No alto, o pedrouço bárbaro,
rância, a majestade, a energia da Terra     a ramaria aromatica, os valles ondulan-
   Anima-a o sopro soberano da Natu-        tes. Em baixo, a estalactite subtil, a sel-
reza, de que ella reproduz, ao mesmo        va estratificada, a mina prodigiosa que
tempo, os ímpetos e as doçuras, as sua-     se estende num labirintho, que se mul-
vidades e as magnificencias.      Mergu-    tiplica em um meandro infinito de filões
lham as suas raízes no próprio solo que     opimos. Ali, o júbilo do espectaculo
os nossos maiores regaram com o suor        universal. Aqui, o soffrimento, a luta
das mãos e o sangue das veias.              das forças elementares do mundo invi-
   Ella é tudo isso que nos cerca. O        sivel.
cheiro da floresta, o rumor da onda, a         Só os accentos do hymno ou do pean,
macieza do céo, a virgindade da luz.        só o tumulto das multidões modernas
Vaga e montanha, herva rasteira e ar-       lhe offerecem um parallelo digno.
vore folhuda, crepúsculo e madrugada,          Graça Aranha é um creador de en-
ella povssue os rythmos bárbaros do meio    thusiasmo. Chammeja-lhe nos olhos a
cósmico: a bruteza da pedra e o per-        fulguração de Ariel, a dionysiaca ale-
fume da flor, a riqueza mysteriosa dos      gria de Malazarte! A alegria de cons-
carvões obscuros, o brilho solai* dos       truir, de edificar, de talhar no granito
metaes e das pedrarias.                     e na argilla, no bronze e no porphiro o
   E' ouro, diamante, mármore, cristal!     munumento para a Eternidade.
   Tem camadas profundas, como o
chão em que assenta a planta dos nos-          A Alegria de dansar livremente sobre
sos pés morenos.                            as Cousas, de imprimir na matéria ephe-
   Abre na superfície corollas e frondes,   mera a juventude perpetua do Espirito.
troncos e rebentos, reparte-se em fios         Toda a sua obra é um conselho para
d'agua, em volumosas torrentes, em ca-      crear. E' uma voz que exige imperio-
choeiras íngremes, em lagos espelha-        samente, uma voz que sempre repete:
dos.                                        Crea, e serás perfeito. Tua felicidade
   Reflecte o sol, reluz nos incêndios do   está na harmonia que souberes arran-
sol tropical!                               car do teu coração. Faze delle um ins-

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trumento capaz de traduzir a intensi-
                                       3    sia de a fixar em tua creação transcen-
dade, a totalidade da Vida. Goza e cho-     dente .
ra, soffre e sorri, que será divina a tua
                                                "Sob a violência luminosa do meu
Realidade.
                                            céO; eu te suscitarei idéas fortes e ou-
   Toda a sua obra nos diz: Olha o teu      sadas. Possne intimamente as cousas
paiz, olha a milagrosa fonte de energia     sobre que o teu espirito paira. São os
que o Destino te concedeu. Vive o es-       dons da Terra que é tua.
pectaculo único da Terra em que nas-
                                               "Corre o risco da morte, que é o prê-
ceste. Está nella tua finalidade. A tua
                                            mio da vida. Na alegria interior goza
finalidade é o enthusiasmo de viver, de     o eterno espectaculo. Sê insaciável de
viver perigosamente, de amar a immen-       belleza, de poder, de alegria, e faze da
sidade maravilhosa da Vida.                 tua Nação uma imperecivel obra de
   A tua finalidade é a contemplação do     Arte!"
espectaculo universal. E' a Arte!
                                               Graça Aranha, poeta épico da Raça,
   "A arte é a tua libertação. Elimina o
                                            Greador de Enthusiasmo!
terror inicial e funde o teu ser no Todo
                                                    Bravo !
Infinito. Esta é a tua suprema victoria.
A tua pátria é movei e tu terás a ân-                  RONALD DE CARVALHO

A estética de Malazarte
m
               ALAZARTE é a tortura         vitoriosas e sublimes. A magia é um
                violenta da imaginação      deslumbramento e o espirito insatis-
                insaciável e inquieta,      feito e audaz, fugindo á equação das rea-
                translúcida ou opprimi-     lidades, se lança em busca da visão ma-
                da, girando em torno da     ravilhosa. Oh! o desengano.        mas o
 realidade que a atormenta e se esforça     deseng-ino é ainda o excesso da imagi-
por decifrar. E' um conflieto perma-        ginaçlc, a espuma que transborda do
nente e fatal, em que a fantasia precisa    cálice para se desfazer em bolhas de ar.
dominar a contigencia e procura ven-        Ucp      a queda, a dissolução «Io sonho,
cel-a pelo delírio, pela illusão, pela      a separa ç;l o, a dôr-
mentira da vida. Sem poder engrande-           Graça Aranha arrancou do fundo da
cel-a, com o sentimento divino ou a         nossa alma popular a figura de Mala-
conciencia do universo, o seu esforço       zarte — esse demônio subtil como Me-
está em superar as coisas efêmeras e        phistopheles, menos universitário e mais
passageiras por uma idealidade falsa,       desabusado —- e criou o symbolo da
transfigurando as apparencias em forças     imaginação, em que justifica a unidade

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4     Natureza do Brasil, sobretudo, fremente
pantheistica do Universo, no esboço da
philosophia da "Esthetica da Vida" A        e viva, numa grandeza estonteante, su-
imaginação ardente perturba a existên-      btil e malévola, agasalhando e ferindo,
cia humana e a transvia da unidade uni-     extasiando e maltratando. A miragem
versal, a que tende pelo amor, para pre-    que desperta criou em nós um povo de
cipital-a na tragédia da separação, que     exaltados e imaginosos, de idealismo
procura a morte libertadora.                violento mas nostálgico, que procura en-
                                            ganar-se com as coisas, quando é custo-
   Malazarte é a Natureza, fonte de illu-
sões e enganos, porque a própria côr é      so dominal-as.
uma mentira da luz.      Malazarte é so-       Malazarte é ainda um symbolo phi-
nho e ânsia. Em seus olhos fusilam re-      losophico. A imaginação como força
flexos verdes de desejos, na sua bocca      dissociativa na personalidade, afastan-
ha promessas deslumbrantes e capito-        do-a do Todo Infinito, em que Graça
sas, seu segredo é uma maravilha fas-       Aranha sente a solução universal. 0
 cinante. O esplendor de todas as coisas!   seu alto engenho vê a imaginação como
   A historia do urubu falador, que des-    uma enorme gyrandola, que esclarece
cobria thesoiros occultos, até dinheiro     o céo com mil reflexos multicôres, mas
em moedas de ouro, revela o caracter        o deixa embaciado depois por nuvens
de Malazarte — a mentira como solu-         de espesso fumo. Estas seriam a se-
ção commoda e trapaceira da vida. Mas       paração, que é o terror, a angustia su-
a mentira de Malazarte não vingaria         prema da criatura, que só pelo amor,
sem a ambição dos credores, o que mos-      pela arte e pela philosophia se ha-de
tra no desejo a primeira deformação da      libertar, integrando o sêr na totalidade
realidade. Ai dos que querem! terão          divina. A tragédia de Malazarte é a
sempre no alcançado o desengano da          separação. Tudo é separação e dôr
cubiça. Malazarte completa os que nelle     são as palavras derradeiras de Eduardo,
crêm. Seduzindo ou ludibriando, o ex-        depois que Dyonisia fugiu com Mala-
tranho demônio se funde com a victi-        zarte em busca do Palácio de CoraL
ma para perdel-a irremediavelmente.          Dyonisia presentiu que o sonho é bello
Desperta esse mysterioso residuo das        e mata. Mas o sonho é bello e a Natu-
sensações, para exaltar o espirito numa      reza a vida eterna.       E, nessa fusão
magia perturbadora e allucinante, onde       symbolica da Natureza com o elemen-
não ha repouso, mas decepção por fim.        to espiritual da fantasia, Malazarte sur-
                                             ge como o demônio insaciável do de-
  Disse que Malazarte é a Natureza, por-     sejo, da aspiração, do sonho.
que nelle encontramos o permanente            Oh! o Palácio de Coral scintillando
engano e a lei de sua constância se es-
                                            na luz.
quiva na múltipla e ruidosa variedade
das fôrmas passageiras. Malazarte é a                         RENATO ALMEIDA

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O psychologo da raça
n
                                            va-a. E, para reagir contra essa perspe-
          O desenvolvimento lógico (pie     ctiva que Le Bon, sábio tartüfo, de eru-
             segue a literatura nacional,   dição suspeita, pregava como signal da
             firmando-se, personalisan-     morte do paiz e que Bagheot, sábio mais
             do-se, com múltiplas cor-      sensato, pedia que todos a meditassem,
             rentes, com múltiplas in-      houve uma guerra surda, titanica, bru-
fluencias, vieram aos poucos surgindo       tal da qual sahiram vencedor o homem e
os verdadeiros interpretes do sentimen-     a raça. Do baralhamento inconsciente
to nacional, os escriptores genuinamen-     sahia um todo consciente, pensando do
te da terra e da raça.                      mesmo modo, sentindo do mesmo modo.
   Assim é que só depois do Roman-          aspirando do mesmo modo. E a alma
tismo se verificam as tentativas mais       creada já não era mais a alma do ho-
fortes, mais intemeratas e mais ouzadas.    mem, nem tão pouco a alma da terra.
Gonçalves Dias, poeta fidalgo, poeta           Era alma única, a alma da terra e
pintor, lirico robusto canta a sua terra    do homem, a alma brasileira.
com grande força emotiva e dedilha com
uma correcteza clássica, portuguezissi-        A alma cidadina.     a alma supérflua
ma "As sextilhas de Sto. Antão" Alen-       dos centros de civilisação, a alma cara-
car apega-se ao lirismo de Chanteau-        cterística da sociedade brasileira.    a
briand — para compor "Iracema", li-         tona, a pelle da grande alma nacional,
vro deveras interessante, mas onde tre-     a alma supérflua da alma, encontrou em
me o vacilla o cunho próprio, o cunho       Machado de Assim o seu psychologo.
nacional.                                       O romantismo findará no exaggero
   A literatura mostra-se nessa lucta,      egocêntrico, no pieguismo exaltado da
onde se percebe a alma da terra gritan-     imaginação. Machado de Asis via, sen-
do, implorando por um artista que a         tia, compreendia e criticava o seu meio,
cante, que a compreenda. Mostra ainda       a vida de sua vida e as "viagens em
mais a inquietação turturante do ho-        volta de sua alma" eram viagens em
mem que não se apaziguou com a natu-        volta da alma de uma sociedade.
reza, do homem que vive afastado delia         Machado de Assis, era o Sterne
como seu inimigo. A civilisação, como       brasileiro, o France brasileiro que,
 "uma violência imposta á Natureza",        com um sorriso e com um "hu-
veio, entre nós, nos arroubos da con-       mour" imcomparavel, tirava a "maquia
quista, de um modo único, illogico, pa-     lage" ridícula da sociedade enfa-r
radoxal.                                    tuada do Rio de Janeiro, que é a do
   E assim o homem para vencer a terra,     paiz todo.
para apasiguar-se com ella, tinha de lu-       A terra bronca e selvagem, impo-
ctar comsigo próprio, victima de um fa-     nente nos seus quadros naturaes, sem-
talismo histórico que se tornou um fa-      pre novos, na proteica manifestação da
talismo ethnico, no baralhamento incon-     Natureza, pediu para si o gênio impres-
sciente de três raças diversas.             sionista de Euclydes da Cunha. "Os ser-
   A terra gigantesca, barbara, uberrima    tões" é a epopéa da terra. Nelle vis-
engulia a diminuta população, traga-        lumbra-se, atravez das pinCelladas vio-

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lentas, a lucta do homem bronco, com
                                       6        0 paiz enorme, de uma riqueza fan-
a terra bronca: — o sertanejo contra         tástica, mostra, por Graça Aranha, em
o sertão; é a lucta da civilisação con-      certo fatalismo, em todas as coisas, a
tra o barbarismo nativo.                     integração do homem com a Natureza,
   Assim, Euclydes da Cunha mostra a         para a harmonia esthetica da vida.
formação da grande alma, da alma em             "Chanaan" é o livro intimo, o ca-
lucta, da alma inconsciente e violenta.      derno de desabafo, os versos interiores
O seu livro é um retrato, o retrato feito   da alma brasileira. Ha qualquer coisa
por Monet.                                  de indiano, ha qualquer coisa do mys-
                                            ticismó trágico dos "Ulpanishads", que
   A alma brasileira projectava-se en-      vem do seio da nossa terra, da mons-
tão mais serena, mais harmoniosa,           truosidade das nossas paisagens; e ha
mais profunda. Machado de Assis,            também um lirismo deslumbrante, um
cheio de sarcasmo, exprimia ape-            lirismo superior que vem, atravez dos
nas um modo do nosso sentir. Machado        séculos, do "Latio"
de Assis ria-se da camada civilisante.         Graça Aranha é o domínio superior
Euclydes da Cunha era o "outro modo",       da latinidade; é o continuador artístico
era o sentir áspero e brutal do sertão      de uma civilisação.     "Son art est Ia
desconhecido; era o cerne da raça que       fleur d'une expérience et Ia quintessen-
se transplantava para dentro de um es-      ce d'une race", diz Gamille Monclair,
tudo cyclopico.                             prefaciando "Malazarte"
   Era preciso um artista, mas um ar-          Graça Aranha, revela uma unidade;
tista pensador, um artista philosopho       surpreendente em todas as suas obras,
que sentisse, compreendesse e tivesse a     em todos os seus conceitos. Jovem ainda
força potencial de exprimir toda a as-      prefaciando o livro de Faustb Cardoso,
piração, todo o ideal, todo o sonho bra-    diz o que diz hoje, na força maior de
sileiro; era preciso um artista que cons-   sua vida, da vida sentida e luetada.
truhisse num bloco harmonioso e único,         A philosophia de Graça Aranha é a
a força creadora da raça.                   philosophia brasileira, porque mostra,
   Esse artista encontrei-o nas paginas     paradoxalmente, grande elevação espi-
do "Chanaan". E' o psychologo da raça.      ritualista, sonhadora e conclusões mu-
Graça Aranha!                               nisticas, materialistas, fataes. Graça
                                            Aranha vê a fatalidade da vida no tur-
   O valor literário e artístico de Graça   bilhão cósmico, vê como um Leibnitz e
Aranha é de sobejo conhecido. "Cha-         depois a transformar e, como ura Nitsz-
naan" é uma celebridade. Quero, en-         che, pede que se transforme todas as
tretanto, fazer resaltar esta qualidade     sensações em sensações d'arte. O autor
primordial de Graça Aranha: -- Foi elle     de "Chanaan" vê sempre que "a tra-
quem, com mais arte, maior senso phy-       gédia fundamental da existência está
losophico, maior vigor estylistico, con-    nas relações do espirito humano com o
seguiu exprimir, como é nas suas va-        Universo"
riadas manifestações — a alma brasi-           Essa generalidade é, entretanto, uma
leira.                                      formula da alma da raça, da alma bra-
   "Chanaan" é um desabafo de alma.         sileira.
de uma grande alma, da alma de um              Só agora é que tive a feliz opportuni-
povo. E' grito da dôr brasileira; é a       dade de ler "Malazarte", engenhosa
turtura do seu gênio; é o sonho de sua      peça em três actos, onde numa elevação
poesia.                                     ibsenniana se abre toda a psychologia

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da raça. Aquelle final é terrível, é deso-
                                                  7         Taine explicou a incomparavel fi-
lante. O indivíduo separado da Natu-                   gura de La Fontaine, estudando a terra
reza, por incapacidade de transformar                  e o meio em que elle viveu. Erro das
as sensações em sensações estheticas:                  pretenções scientificas do sapientissimo
— "Tout est séparation et douleur"! E                  século desenove! O terrível La. Fon-
porque? Porque "a inquietação é o                      taine sahiu assim, porque veiu ao mun-
fardo da vida do espirito. Nascido de                  do nas regiões ricas da Ghampagne,
um sonho de navegantes, o Brasil ficou                 onde "Ia suavité rempli toute Ia plai-
para sempre enfeitiçado pela miragem"                  ne".   em 1621!
   Do "Chanaan", de "Malazarte", da
"Esthetica da Vida", pode-se tirar esta                   Ora, a suavidade do clima de Gha-
conclusão veridica que elle, Graça Ara-                teau Thierry !
nha tirou num bello artigo sobre "As                      Gomo explicar Graça Aranha, sahido
raizes do idealismo — "Faminto, tor-                   do Maranhão, vivendo depois na diplo-
turado, esmagado sob a tyrannia, lá vae                macia, longe de terra?!
o Brasileiro, caminhando extatico den-
tro da luz, escravo da miragem, mystico                   Isso não importa a mim. Importa-me
                                                       a realidade que constato; importa-me
do idealismo. . "                                      verificar o que ha, de facto, para a
   Graça Aranha conhece, desse modo,                   gloria nossa: — o grande psychologo da
todos os nossos segredos, todas as nossas              raça.
afflições, todas as nossas ttfrturas e a
porção de idealismo que nos guia.                                                   MOTTA FILHO

Graça-Aranha e a crítica européa
           francez — "aquelle senhor condeco-          não trazem sua chronica estrangeira. Os edito-
          rado sentado ali naquella rneza de           res lançam todos os dias traducções de livros

O         restaurante e que está pedindo mais
          pão ao garçon e que não sabe geo-
           graphia" — ignorou durante muito
          tempo as litteraturas estrangeiras.
              Quando Louis XIV pediu ao conde
de Cominges—embaixador de França em Londres
                                                       estrangeiros. A Framça, enfim, descobrio a
                                                       existência da« outras litteraturas contemporâ-
                                                       neas. O francez, como todo poovo super-civili-
                                                       zado, procura sempre e antes de tudo a sensa-
                                                       ção nova. Quando Lugné-Poe "lançou" Ibsen
                                                       em Paris, antes de acceitar o gênio, o publico
— Informações sobre os grandes homens in-              gostou da sensação nova, "étrange" do dra-
glezes, Cominges só soube citar um tal Milto-          maturgo nortista. A consagração velo mais
nius célebre pelo «eu fanatismo politico. Foi BÓ,      tarde.
muito mais tarde, em pleno século XVIII, que              Nós brasileiros éramos, até pouco tempo, de
a França descobriu a Inglaterra        intellectual.   todos os povos o mais desconhecido em Fran-
Mais tarde, por causa do romantismo, a Fran-           ça. Geograficamente, não se sabia bem se o
ça ficou conhecendo a Allemanha e, se não              Brasil, era uma província argentina perto de
fosso o visconde de Vogue e Th. de Wysewa,             Bueno-Ayres ou uma republica da America
talvez os franoezes    iginorassem     Tourgenieff,    Central: o Brasil ficava "lá    bas". Quanto á
Tolstoi e Dostoiewsky, durante mais uns vinte          nossa litteratura, era um desastre. Se ms bra-
annos. Haveria um estudo interessantíssimo a           sileiro affirmasse que havia uma          litteratura
escrever sobre a litteratura     estrangeira em        brasileira o francez, sempre educado, sorria.
França.                                                Ora, o sorriso, em litteratura é t e r r í v e l . . .
   Felizmente, hoje o francez já começa a mos-            E' verdade que Machado de Assis foi tradu-
trar um interesse maior pela litteratura exóti-        zido, ha annos, mas, sejamos francos: o gran-
ca, como elles dizem. São raras as revistais que       de publico não o conhece. Apenas certos espi-

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ritos universaes, como Anatole France, certos
"tourisítes" como Paul Adam e Clemenceau,
                                             8     "Revue de Paris", estuda Chanaan e acha pa-
                                                   ra resumil-o esta phrase admiravelmente jus-
certos especialistas, como Ph. Lebesgue e V.       t a : " h a em Chanaan uma symphonia e um
Orban, lera'm e apreciam o maior gênio da nos-     poema."
sa litteratura. Esi^e mal nasceu com o absoluto         No "Monde Nouveau", André Toledano, analy-
regionalismo da nossa litteratura. Monteiro Lo-    sando a litteratura brasileira, diz: "Chanaan
bato não foi o creador do regionalismo, pela       marque une date dana 1'histoire de* lettres
simples razão de que nossa litteratura sempre      bresiliennes, Ia date Ia plus importante cana
foi regional, com uma excepção —• Graça Ara-       doute... Avant Chanaan, les romanciera brésl-
nha. O suceesso de Chanaan e Malazarte, na         liens avaient sú décrire avec talent les moeurs
Europa, prova perfeitamente o que escrevo.         et les paysages de leur terre, et leurs oeuvres
   Joaquim Nabuco, uma das mais bellas íntel-      offraient au lecteur europeen un reel interêt d'e-
ligencias que tivemos, profundo conhecedor da      xotisme pittoresque; avec Graça Aranha, le ro-
mentalidade européa, comprehendeu a impor-         man brésilien «'élève a dessus d'un particula-
tância, para nós brasileiros, da publicação de     risme purement descrlptif pour aborder en toute
"Chanaan" e escreveu ao Garnier, felicitan-        hardiesse un problème philosophique et social
do-o por têr revelado Graça Aranha. Em 8 de        qui, par ses données mentes, bien que restant três
outubro de 1904, Nabuco escreve a Machado           brésilien, dépasse le champ assez restreint de 1'ho-
de Assi3 para manifestar sua "certeza que d'o-     rizon national: celui de Ia transformation d'une
ra em deante, elle, Graça Aranha, é quem mais       nation sous 1'influence de 1'emigration étrangère
pode fazer pelo brilho e nome das nossas let-      et surtout allemande, ou, comme le àH 1'auteur
tras."                                             lui même, "Ia tragédie qui se passe dana l'ftme
   Nabuco viu tudo quanto Chanaan nos trazia       d'un peuple quand il sent quMl ne se dédoublera
de novo e de universal. Com uma perspicácia        plus jusqu'à 1'infini"; car & 1'heure même ou Ia
admirável, elle soube vêr toda a philosophia, a    nationalité brésilienne prenait conscience d'elle<
"inteiligencia infinita" a inspiração que ha em    même, elle a senti toute Ia douleur de se voir
Chanaan, como em Goethe e Shelley. Nabu-           condamnée à disparaítfe."
co, espirito universal, comprehendeu tudo isso
e quando afíirmou que seria elle quem mais
poderia fazer pelo brilho das nossas lettras já
prévia a repercusâo no estrangeiro.                   Pouco depois da consagração definitiva de
    Em 1910, apareceu em França Chanaan. O         Chanaan, em França, apparecia na Inglaterra a
conde Prozor, o admirável traduetor de Ibsen,      traducção ingleza do grande romance, prefaciado
critico profundo, uma das personalidades mais      desta vez por Gl. Ferrero e trazendo na capa a
em vista no mundo das lettras parisienses,         phrase de Anatole France: The great american
prefaciando o livro, soube mostrar ao publico      novel.
francez toda a alta significação e o profundo         O suceesso foi igual ao que o romance teve em
valor duma das obras niais notáveis da nossa       França. Em ambos os paizes, a critica soube vêr
litteratura. Vamos vêr agora qual foi a opinião    e apreciar a dualidade de Chanaan: a littéraria,
da critica franceza, geralmente cão cheia de re-   a philosophica-social. Com esse êxito, Graça
ticências e fria com as obras alienígenas. Co-     Aranha passou para as fileiras dos escriptove»,
mecemos com um italiano, Gl. Ferrero, univer-      cujas obras não são lidas por um povo só, mas
salmente conhecido. Ferrero escreve no "Fi-        por toda a intellectualidade universal, por "tout
garo", celebre pela sua critica littéraria, duas   ce qui pense et lit."
 longas columnas. Como historiador, sociólogo         Foi em 1911 que se representou em Paris,
e pensador, Ferrero soube apontar o alto valor     no Theatre de POeuvre, Malazarte. E' bom lem-
philosophico e social do romance. Chanaan, diz     brar aqui o papel importante que l"Oeuvre" re-
elle, não têm só um valor litterario, mas uma      presentava nessa epocha, na historia do drama
alta significação philosophica.                    em França. Foi desse theatro que sahiram as
    Paul Adam, — que só hoje depois da sua         obras mais fortes, mais características e que mais
 morte è que foi reconhecido pela França como      influenciaram o theatro francez. Foi l'"Oeuvre"
 uma das personalidades mais fortes que ella       que fez conhecer ao publico o grande Ibsen. Ha-
 teve, — e que os brasileiros lêm porque escre-    veria uma historia a escrever sobre os theatros de
 veu um pessiano livro sobre nossas physiono-      Paris, nestes últimos trinta annos. Nessa histo-
  mias, "Visages du Brésil", consagra a Chanaan    ria, l'"Oeuvre", le "theatre Antoine", le "Vieux
 at? suas duas columnas na "Vie litteraire" do     Colombier" teriam os logares mais .interessantes
 "Temps". Nesse longo artigo, Paul Adam estu-      e mais salientes. O papel de Malazarte, papel cul-
 da minuciosamente o livro e considera-o uma       minante, foi desempenhado por um dos melho-
 das obras primas da litteratura moderna. Ed-      res actores que a França teve nestes últimos tem-
 mo.nd Jaloux, o célebre romancista francez, na    pos: de Max, da Oomêdie française, o admirável

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c^   ^
successor de Mounet-Sully. Os outros foram en-
   tregues a Sephora Mossé e a Greta Prozor, a ex-
                                                    9     tiples enchantements. Conune le áh M. Camille
                                                          Mauclair dans «a préface "c'est Ia fleur d'une
   traordinária interprete de Ibsen, uma das poueas       expérience et Ia qirintesence d'une race."
   mulheres gênios que eú vi até hoje.                       Francisco de Miomandre, o grande escriptor
      Malazarte foi discutido e em parte incompre-       francez, no "Excelsior" escreve um longo artigo
   hendido pelo "grande publico" Lendo-se o dra-         sobre a personalidade de Graça Aranha e sua
   ma, entende-se perfeitamente que essa aglomera-       obra, saUentando a belleza poética de "Malzar-
   ção denominada pelos especialistas de "publico",      te" e J. Charpent er adianta: je ne saurais dire
   essa reunião de senhores gordos e calvos das ga-      à quel point 1'admirable Malzarte m'a interesse
   lerias que escolhem o theatro como o melhor lo-       et c'est três sincerement que je le considere
   gar para fazer, bem sentados, laboriosa diges-        comme un chef-d'oeuvre.
   tão, não tivesse sentido Malzarte. Malzarte é             Depois de "Malazarte" Graça Aranha escreveu
   um drama philosophico, para a elite. Essa elite       a "Esthetka da Vida", onde o grande pensador
   composta, de homens como Prozor, H. de Re-            reuniu toda a sua philosophia e que apareceu no
   gnier, Adolphe Brisson, Boutroux, Pierre Mille,       Brasil em 1921. "A parte philosophica desse li-
   Gelouoteff e outros, acceitou desde a primeira re-    vro", amnuncia o New-York Herald, edição pari-
   presentação, o grande drama.                          siense, de 14 de julho de 1921, "será publicada
      A verdadeira critica de Malzarte appareccu de-     na "Revista de Paris", a parte metaphysica do
   pois da publicação do drama em volume prefa-          Brasil na "Revista de Genebra", e a parte cri-
   ciado pelo maior critico francez contemporâneo,       tica final no "Monde Nouveau".
   Camille Mauclair.
      Henrl de Regnier faz no folhetim do "Journal
   des débats" uma longa analyse de Malzarte, ex-
   plicando o symbolismo da peça. Camille Bruno,              Além de todas essas criticas recebeu Graça
   na Revue de PAmerique latine, fallando do sym-          Aranha uma manifestação que a intellectualida-
   bolismo no Brasil, á pròpostío de Malzarte, diz:        de franceza só reserva aos grandes homens das
   "uns dos seus melhores escriptores acaba de            lettras estrangeiras: foi recebido no grande am-
   obrigar (o Brasil) a acceitâr o symbolismo (dra-        phyrheatro da Sorbonne, perante uma assistên-
   mático) pela magia de um canto dialogado, bri-          cia de mais de trez mil pessoas. Graça Aranha
  lhante e louco como uma comedia de Shakes-              não foi recebido em Sorbonne como diplomata
  peare, fantazista e "tendre" como um provérbio          amigo da França, mas sim como litterato. Sau-
 de Musset, pensativo e triste como um drama              dou-o Ed. Rostand, em prosa, e não em versos,
  de Maeterlinck"                                         como costumava fazer, com a verve que lhe trou-
     Lugné Poe no "Eclair" diz: De cette pièce, orí-      xe tantos admiradores e bastante dinheiro.
  ÍC inale par son sujet et par Ia façon dont elle est        Bergson, felicitando Graça Aranha, a propósi-
 traitée, se dégage un três beau talent, La piéce         to de sua commenda da Legião de Honra, diz:
  reallsée d'une façon êtonnante pos&éde un char-         "jamais distinction ne fut mieux méritée, ella
  me partlculier par les legendes qu'elle rappelle,       va au représentant par excellence de Ia pensée
 1'eloquence dont elle est remplie et Ia sincérité,       brésilienne dont j'aprécie pour ma part haute-
 Ia foi qui ne cessent de l'animer."                      ment le talent et les travaux."
     O "New-York Herald" diz: "Le theatre de l'Oeu-           Como se vê, por este breve apanhado da criti-
 vre a donné 1'occasion aux parisiens d'applau-           ca européa, sobre a obra de Graça Aranha, o
                                                          grande pensador brasileiro sabia, rompendo a
 dir une des pièces les plus caracteristiques du bri-     triste norma de nossos escriptores, fora do nosso
 Ihant génie de Graça Aranha. Mais conrme pour            horizonte para brilhar em outros paizes. Graça
 toutes les oeuvres ou Ia perfection litteraire le        Aranha foi o primeiro escriptor brasileiro que
 dispute à Ia puissance de Ia pensée il est agréa»        nos1 trouxe, enriquecendo-nos, o pensamento, a
 ble de lire Ia pièce qu'on a vue représenter pour       philosophia, a ânsia metaphysica no romance.
 Ia soumettre au second jugement, le meilleur,            Elle nos livrou enfim dos eternos themas regio-
 cehii qui est soustrait à 1'ambiance particultére        naes, estreitos e vazios como a moringa nacional.
du spectacle." Segue uma longa analyse do dra-            A litteratura brasileira checou a um ponto em
ma e o auctor do artigo termina nestes termos:            que ella não pôde mais continuar a cantar lyri-
"1'abondance, Ja puissante poesie de cette oeuvre         camente como o sabiá e descrever com exclama-
symbolique donnera à ceux même que ne parti-             ções e reticências. Nesta terra onde toda gente
cipent pas à cette pensée, et qui croient que Ia         canta em versos as nossas palmeiras, é preciso
joie inconsciente est sans valeur, le plaisir de         pensar ura pouco, porque todas as litteraturas
suivre, par les images «éduisantes, une pensée           verdadeiramente grandes foram construídas pe-
claire dans son plein développement dramatique.          los pensadores profundos.
Les repliques semblent les clefs d'or dHnnombra-
bles revêries. Malazarte est une féerie aux mui-                               RUBENS DE MORAES

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10
A s s i m Elle compõe
        esculptor Jean Magrou acha          saccada a maré primaveril sobre as pe-
         que elle tem um perfil de Cé-      dras illustres.

O        sar romano.
            Mas nos seus olhos revoam
         os sonhos millenarios do
         Celta.
                                               E não falamos.
                                              A luz derrama-se, espraia-se, canta,
                                            — soberana.
                                                      (Elle anda para lá, para cá.)
                                               — Quer escrever? — Eu dicto.
   Pariz. Fevereiro.                           "A fremente energia que faz e refaz
   Semi-luz de desanimo. Cinzas do céu      o mundo.     "
sobre as cinzas de Pariz. Ha cinzas            A voz bateu-me aqui. Meu sangue
também no ar. E o coração se aperta         galopa. O peito se me dilata e elevo-
e o espirito fraqueia, esmorecido.          me todo. Agora vejo tudo melhor. .
   Sentados, frente a frente, elle lê. —    E vou além, além, nas azas delle. Elle
O ultimo capitulo escripto. — O Amor.       fala.    — Ou canta? — Já deixei a
   Um sopro brando, bem brando, mas         terra e lá de cima como tudo é bello iJ.
possante, imperioso, omnipotente, vin-      grande e harmonioso!
do do mysterio de nós mesmos, — uma            Arrebata-me o rythmo eterno. Eu
doce violência.    Uma tristíssima ale-     mesmo sou rythmo
gria. Um tormento aniquilante, — (e            Eu? — Que é o eu? — Não ha mais
tão bom), que queima, torce, fere, dila-    eu.
cera, — e acaricia. Súbitas rajadas de
esperança, em que o céu se rasga, mos-                   (Escrevo machinalmente.)
trando a luz eterna. Um temor do
creança, um orgulho de victoria, uma            Um oceano me leva, em que me
indizivel expansão emocional, — dis-        afundo, me perco, me dissolvo. Suble-
solução de morte e incêndio de vida.        va-me uma emoção infinita, extatica.
Prazer e tortura. O Amor!
                                              A voz parou.
   Corre-me um calafrio, e quando nos          E fica como um despertar de chlo-
olhamos, vemo-nos atravez um vidro          roformio, em que tudo é vaporoso, in-
fosco de lagrymas.                          certo, immenso e impalpavel. Um res-
                                            to de vertigem.
   Maio.                                       O sol entra e ri na sala silenciosa.
   A luz, poeira resplandescente, inten-                       *
sifica as vibrações das cores. E tudo tem      O verão já se annuncia pelas trom-
vida.                                       betas do sol. O volume está quasi prom-
   Na janella, enquadram-se, lá em          pto.
baixo, uma perspectiva do Louvre, as           Já nasceu, tomou forma e poliu-se a
Tulerias geométricas e o Sena.              obra philosophica. Mas qual será a sua
   Quando entrei, elle estava bebendo á     applicação na nossa terra?

 k Ia x o n
11
  De longe, de tão longe, vem a visão     derão de todo, seguramente \ — mas que
do mundo brasileiro. E o seu esplen-      importam os velhos? São os jovens que
dor formal, resplandescente da luz vi-    elle alveja, a elles se dirige como um
ctoriosa, além dos mares, impõe-se e      grito do Futuro.
impera, — e lhe segue a saudade. Alli        De lá, da Cidade já exhausta de tan-
se conjugam as forças de uma grande       tas glorias, o Mestre procura ouvir ba-
nação.                                    ter o coração do Brasil vindouro e pal-
   Fundem-se o optimismo innato no        pitar a sua anciã de pensar. De longe,
destino da raça, a magia do espectaculo   de tão longe.
grandioso, o poder synthetico do seu         — Assim nascia a ESTHETICA DA
pensamento. E o Brasil, sua natureza e    VIDA.
sua gente incorporam-se á obra.              Rio, Novembro de 1922.
   — Este livro já não é de hoje. E' de
amanhã. Os velhos não o comprehen-                    LUIZ ANNIBAL FALCÃO

                   MORMAÇO
                                           (Para GRAÇA ARANHA)

                    alor. E as ventarolas das palmeiras,

            e        e os leques das bananeiras
                     abanam devagar,
                     inutilmente, na luz perpendicular.
             Todas as cousas são mais reaes, são mais humanas:
             não ha borboletas azues nem rolas lyricas
             Apenas as tatouranas
             escorrem, quasi liquidas,
             na relva que estala como um esmalte;
             e, longe, uma ultima romântica
             — uma araponga metallica — bate
             o bico de bronze na atmosphera tympanica.

                                          GUILHERME DE ALMEIDA

         li I a V O II
13
      HO BL                                    Pour GRAÇA       ARANHA
  ^   out seul
f    Et le Seigneur rxt né
•*    en ce jour de paix et de douceur
      Le Seigneur est né à Ia vie
et ie renais à Ia soujfrance
               presque sereine
        Ia soujfrance múrie
au soleil de mes déboires

Noêl!
J'ai aussi ma vache et mon âne
ma bourse vide
et ma solitude
liahl rions en choeur voulezvous?
I/écho fera le choeur
et moi le soliste
au centre de mes quatre murs
Et je rirai si fort et si longtemps
que Von croiru vraiment à ma gaite

Noêl !
Jje Seigneur est né
en ce jour de paix et de   douceur...

O pays de Judée oú nacquit le Sauveur (qui, entre nous, ne sauva personne!),
Vagneau sans tache, le faiseur de miracles (un faiseurl-, le poete au verbe
facile); ô pays de Judée dans Ia nuit des róis mages! Je févoque, ô pays de
Salomé et de Saint Jean Baptiste! Et j'irdis volontiers vers toi comme les
róis badauãs si favais une bonne étoile. Mais je n'en ai qu'une bien maigre et
bien triste. Cest une étoile de    café-concert...

Tout seul
Et tous les abandons
J,écrirais volontiers une tragédie
avec un cinqUième acte bien rempli
de suicides et de trahisons

                  oranons
                  pamoisons
                  et beaucoup d'auPres     réflexions..

Shéhérazade! Olympia! Les dieux sont morts, ils ne pcuvent plus avoir
soif... Moi seul ai soif... soif de bonheur, d'argent, d'amour, et plus encore,

klaxon
13
une grande soif, une immense soif, soif... soif.. soif de quoit     Je n'en sais
rien. J'ai soif! Ualcool tuel Songeons àVavenir de Ia race...

Jesus a dit
Laissez venir à moi les petits enfants
Mais Seigneur il y a en moi un petit enfant
les poetes sont des enfants
ils jouent avec des mots
ils jouent avec des images
ils jouent avec leur coeur aussi
un joujou de riche...
Pourquoi donc n'en voulez-vous pas
de ces enfants-làf
Je sais bien hélas
que vous n'êtes pas
uiv asyle pour enfants    trouvés...

Que d?'amertume! Amère, amçre, plus encore qu'un amer-picon quand il n'y
a pas de diner au bout, cette fareei Et tout est force! La vie, 1'âme, "les senti-
ments"...   Je mens J'ignore tant de choses! Je ne sais pas. Je ne connais
qu'un paysage, là-bas, tout blanc, tout frais, ou il y a des arbres de Noel, et
des rires clairs de femmes en jerseys, et des maisonnettes pacifiques, et une
gare toute petite, si petite qu'elle n'a pas Ia force dlarrêtcr tous les trains,
 et un labeau de joie dorée pendu à une fenêtre comme un drapeau... Je ne
connais qu'un paysage mais beaucoup d'autres paysages me connaissent
parce que je les ai croisés en     passant...

Noêl !
Jesus est né I
                                                         Serge    MILLIET

JPoema                                            Jlbulico
                                                   A GRAÇA ARANHA
Imobilidade aos solavancos.
Mário, paga os 200 réis!

Ondas de automóveis
         árvores
         jardins.
As maretas das calçadas vêm brincar a meus pés.
E os vagaihões dos edifícios ao largo.
Viajo no sulco das ondas
                     ondulantemente.

klaxon
11
Sinto-me entre mim e a Terra exterior.
                   TERRA SUBCONSCIENTE DE NINGUÉM
              Mas não passa ano sem guerra!
          Nem mês sem revoluções!
Os jornaleiros fascistas invadem o bonde, impondo-me a leitura
dos Jornais.
       Mussollni falou.
          Os delegados internacionais chegaram a Lausane.

                   Ironias involuntárias!

Esta mulher terá sorrisos talvez.
       Pouca atracção das mulheres sérias!
       Sei duma criança que é um Politeama de convites, de atra-
cções.

As brisas colorem-me os lábios com as rosas do Anhangabaú.
Sol pálido chauffeur japonês atarracado como um boxista.
                             Luz e força!
                      Light & Power
Eu sou o poeta das viagens de bonde!
Explorador em busca de aventuras urbanas!
Cendrars viajou o universo vendo a dansa das paisagens.
Viagei em todos os bondes de Paulicéa!
Mas em vez da dansa das paisagens,
contei uma por uma todas rosas paulistanas
e penetrei o segredo das casas baixas!

        Oh! quartos de dormir!.
        Oh! alcovas escuras e saias brancas de morim!.
        Conheço todos os enfeites das salas de visitas!
         Al mofadas do gato preto;
         lustres floridos em papel de seda.
         Tenho a erudição das toalhas crespas de crochê, sobre
         o mármore das mesinhas e no recôsto dos sofás!
         Sei de cór milhares de litografias e oliogravuras!
         Desdémona dorme muito branca
           Otelo, de joelhos, junto ao leito, põe a mão no coração.
         Have you pray'd to-night, Desdémona?

 klax on
15
         E os bibelos gêmeos sobre os pianos!
         A moça está de azul
         Ele de cor de rosa.
         Valsas lánguidas de minha meninice!

Em seguida: Invasão dos Estados Unidos.
8hlmmyficação universal!
O fox-trott é a verdadeira música!
Mas Liszt ainda atrai paladares burgueses.
      Polônias interminavelmente escravizadas!
           Paderewski desiiudiu-se do patriotismo e voltou
 aos aplausos internacionais.
                Como D'Annunzio.
                Como Clemenceau.
                        Os homens que foram reis hão de sempre a-
 cabar fazendo conferências?!.
 Mas para mim os mais infelizes do mundo
 são os que nascem duvidando si são turcos ou gregos.
                                              franceses ou alemães?
                                       Nem se sabe a quem perten-
ce a ilha de Martim Garcia!.
       HISTORIA UNIVERSAL EM PEQUENAS SENSAÇÕES
               Terras-de-Ninguem!. .
              .como as mulheres no regime bolshevista.
 No entanto meus braços com desejo de peso de corpos.
Um torso grácil, ágil, musculoso.
Um torso moreno, brasil.
Exalação de seios ardentes.
Nuca roliça, rorada de suor
 Uns lábios uns lábios preguiçosos esquecidos n'um beijo
de amor.
Creplto.
E uma febre.
Meus braços te agitam.
Meus olhos proouram de amor.
Sensualidade tem motivo.
E> o olor óllo das magnóllas no ar voluptuoso* desta rua.

       Dezembro —1922.
                                       MARIO DE ANDRADE.

klax on
16
                       (Del libro HÉLICES.)
         ubes gimnásticas
                sobre el trapecio atmosférico
                     En Ias artérias pleonéxicas
                     fluyen los glóbulos fabriles
                    ESTAMPA DEL SIGLO XX
Absorto ante un fascitol
       yo admiro el lirismo dei voltámetro
                       FOGOS     IMPULSOS
La pleamar multitudinaria
       abraza con sus tentáculos
                Ia vida sádica
Entre Ia fronda de los dinamos
        se forjan los espasmos
                        hiperespaciales
En Ias avenidas múltiples
       aflora Ia rosa tentacular
Con Ia brújula dei sol en mi mano
               descubro trayectorias immaculadas
Eva Porvenirísta
formada de copos atmosféricos
                    En sus mejillas siderales
                    yo vendimio los besos dei horário
       Y dei horizonte dinâmico
cae Ia poma plenisolar
                                   GUILLERMO DE TORRE.
                                                    (Madrid.)

k 1ax o n
n
    PAZ UNIVERSAL
                                              A GRAÇA ARANHA

a      legria!
         Só no meu paiz a terra ainda é vermelha.
         Esforço para germinar,
         ou para supportar o peso dos homens.

Não ha mais sangue sobre o mundo.
         Elle está todo branco,
         lymphatico,
        côr de cidade, côr de riso.

Alegria!

           Os povos,
           as grandes ruas iIluminadas,
           e os homens felizes,
           esquecidos das trincheiras,
           afastados da dôr,
           amputados da dôr

O passado perdeu-se,
e não conhece mais os caminhos,
os caminhos das almas.

E ninguém sabe que nesta hora,
em toda a parte ha pessoas que agonizam,
         e ha veias que se esvasiam
e ha corpos ainda quentes sob a terra fria.

ALEGRIA! ALEGRIA!

           A vida vae na frente de cada homem,
           como uma espada polida
           que elles vão brandindo.

k l a x on
ALEGRIA!
                           18
          PAZ UNIVERSAL!

Nunca houve tanta guerra,
tanta lucta entre os homens!

          Lucta amarga para viver,
          lucta ardente para amar,
          lucta dolorosa para sorrir

ALEGRIA!

          PAZ UNIVERSAL!

                               CARLOS ALBERTO DE ARAÚJO.

             PROJECTOS
                                          A GRAÇA ARANHA

        e manhã:

d        Tenho convite para o baile
        Casaca
         Decote
        Orchestra phantastlca frenética
Lindas mulheres.
VOU.

A' noite
Conferência sobre os Eleatas
No correio cintas para KLAXON
35-36-37-38-39
Dentro das grades a moça da folhinha não se cança de cheirar a rosa

klaxon
19
            MAIO
               12

A pêndula Io relógio marca passo eternamente
O guichet de madeira
Guilhotina
Decapitado como na figura de Changail
A lua cheia de pó de arroz
 Espaduas nuas
Prompta para o baile
Rua 15 de Novembro de 1889
Que mulher linda!
Passa deixando um sulco de perfume
 O asphalto de louça reflecte as pernas das costureirinhas
E das dactylographas
 Meu coração dactylographa impressões

Meu corpo é um mastro de sombra tombado
A cordoalha dos meus braços
Teus seios são proas
Cabelleira desnastrada bandeira de navio
Quadro naufrágio de projectos
Minha alma braceja
Cinematographo de sombras
A bengala de Carlito é a batuta que reje a symphonla moderna

No café mezas desoccu padas
Esfrega o zinco do balcão
CHA' CHOCOLATE LEITE
Jornaes do Rio
200 reis para falar ao telephone
3 AVENIDA
E' tudo quanto fiz aquelle dia

MORAL: Eu nunca poderia escrever "PALUDES"

                                                  LUÍS ARANHA

k 1 a x on
20
A EXTRAORDINÁRIA HISTORIA DA MULHER QUE SI

            casamento de Adoasto com d. Brazi-          começou alargando os vestidos do enxoval, des-
            lizia foi commentadissimo. Sobre a fe-     amarrando os sapatos, remendando as meias, que

O           licidade e o futuro do casal, corriam
            prognósticos os mais desencontrados
            possíveis. O escrivão Proença, por
            exemplo, ponderava que a differença
            de idade entre marido e mulher
                                                       cediam ante a inopinada invasão da gordura.
                                                       Descuidado, Adoasto olhava para aquella disten-
                                                       são orgânica como quem olha para um diverti-
                                                       mento publico: sorria. Chegava a achar graça nas
 constituía seguro indicio de bemaventurança           velleidades econômicas da esposa, a aproveitar
eterna. E rematava dogmaticamente: "a mu-              os minguados vestidos que trouxera. Com o tem-
lher deve ser sempre mais moça que o ho-               po, entretanto, d. Brazilizia deixou de lado as ce-
mem". Em atititude diametralmente opposta,             rimonias e principiou a distender-se a vontade e
*)lantava-se Aíberico, o caixeíro, homem que lií       a comprar novo stock de roupas, o que motivou
» treslia com facilidade. Para Alberico só o facto     certa appreherisão ao desprevinido espirito de
 de ser o esposo mais velho 15 annos que a espo.-      Adoasto. O terrível era que o engordar de d. Bra-
ea, deixava aquelle em situação nielindrosissima.      zilizia não obedecia a nenhuma previsão scienti-
Imaginem, dissertava o sábio, quando Ella tiver        fica. Si fosse uma evolução lenta, pausada, acom-
os seus trinta anos, a idade perigosa das mulhe-
                                                       panhando, pari passu o deteriorar normal da In-
res, Elle já estará exgotadissimo, morre hão mor-
re. E o que acontecerá depois.. só Deus sabe !         dumentária, tudo iria muito bem. Ao contrario:
Aos que não estavam dispostos a acceitar os seus       era uma gordura frenética, desenfreada, gallo-
vatícinios, o caixeiro arremessava "«em hesitação      pante. Os gastos angmentavam assustadoramen-
o tremendissimo Balzac e a sua Mulher dos              te com a compra de matéria prima para abaste-
Trinta Annos. Os outros, ante tanta massa, fi-         cer o pudor nascente das novas carnes de d. Bra-
cavam atordoados e gaguejavam escapatórias.           zilizia. Adoasto chegou a pedir ã esposa que com-
   Mas,  que é a opinião dos homens, miseráveis       prasse os seus vestidos iam pouco mais folgados
formigas a roer o mármore branco do mistério,         do que que os de costume, para previnir, dizia
comparada com a sabedoria muda e irônica do           elle, para o que dér e vier. Retorquia-lhe a es-
Destino ?                                             posa, desdenhosa: então, você pensa que vou ap-
   D. Brazilizia era bonitinha, bem feitinha, cheia   parecer mais gorda do que na realidade sou ?
de pequenas linhas curvas, por onde toda a gra-       Desta voeê está livre !
ça inquieta do seu corpo escorria encantadora-            Os gastos, entretanto, não era o que affligia
mente. Isto foi a perdição de Adoasto. Casada,        Adoasto. O que lhe causava a mais desoladora
d. Brazilizia deu de engordar. A principio como       melancolia era ver o seu amor diminuir á me-
que fazendo cerimonia, estufando um pouco o           dida que a sua esposa augmentava. Seu amor es-
rosto, as pernas e toda a região consileravel que     tava na razão inversa da massa de d. Brazilizia.
vae desde o diaphragma até a fossa illiaca. D.        Quando Adoasto, por exemplo dizia: "a minha ca-
Brazilizia, tomada de vergonha, quiz disfarçar        ra metade", esta expressão perdia qualquer cunho
aquelle augmento inesperado do seu physico e          metaphorico, para exprimir com exactidâo a ver-

k l a x o n
dade nua e crua; dizendo "cara metade", Adoa-
                                              21
                                                       de transitória da energia, única realidade tangivel
 to referia-se ao corpo primitivo da esposa, o qual,   e irreductivel". Neste ponto, não se conteve e
 bem contra a vontade dos cônjuges, duplicara de       desatou em gargalhadas polyphonicas, em què
 pezo e de volume.                                     havia prodigiosos sarcasmos.
    Na casa, já havia certo mal estar. Tudo pare-
                                                          Dahi para a Theosopia e a Metapsychica não
 cia pequeno, acanhado para d. Brazilizia. E co-
                                                       foi senão um passo. — O mundo é minha repre-
 mo o sen organismo ainda continuasse naquella
                                                       sentação, monologava o afflicto sujeito. Aquel-
 desastrosa distensão orgânica, deu de reclamar
                                                       la condensação excessiva Me átomos, porque não
 o exiguo espaço occupado pelo marido. E Adoas-
                                                       poderei reduzil-a, pela applicação diuturna de
 to, conciliador e prudente, ante aquella obstina-
                                                       minha energia espiritual inconsciente ?
 da reivindicação de espaço que lhe fazia a mu-
 lher, começou a ceder, com incrível resignação,          E em casa, frente a frente com d. Brazilizia,
 o pequeno logar que o Creador lhe destinara no        o seu deformado sonho de amor, encarava-a fi-
 mundo: entrou a emmagrecer, a diminuir-se, a          xo, o olhar vidrado, índice de tremendas concen-
 apagar-se... Não parou ahi a tragédia gorduro-        trações infra e ultra psychicas. Era o prenuncio
                                                       da loucura próxima. A mulher, inquieta, refu-
 sa. D. Brazilizia triplicou se, quadruplicou-se.
                                                       giava-se nos vizinhos pacatos e todos accendiam
 Foi quando Adoastro se alarmou seriamente. O
                                                       velas, que ardiam unanimemente deante de san-
 seu amor não podia alcançar mais aquella dis-
                                                       tos barbudos, de massa, que ameaçavam mila-
 tancia, pois o que amara na mulher não pas-
                                                       gres.
 sava agora de Ínfima fracçâo, que, diga-se de
 passagem, não era imprópria...                           A endocrinologia offereceu-lhe margens para
    Consultando um amigo medico, este, entre jo-       profundas inferencias praticas. O meu mal, su-
 coso e sério, retrucou-lhe: o único remédio que       pirava, está naquela miserável glândula Ityrói-
 entrevejo, é uma' operação. Operação inathemati-      de. Ah! Ah! Ah! Ele queria dizer ''extrair a ty-
 ca, bem entendido: extraia a sua raiz quadrada...     roide" e disse "raiz quadrada". Falava por íue-
Dolorosa ironia ! Desde então Adoasto, eusimes-        tapnoxas, o demônio. Ah! Ah! Aü!
 mou-se na terrível cláusula do seu Eu. Nada de           Neáte estado de espirito, Adoasto, sombra hu-
 confidencias. Atraz destas, vêem sempre os re-        mana, á força de ceder espaço á esposa, entrou,
uioques e os sorrisos tortos da piedade. Deliberou     cheio de intenções cirúrgicas, no seu desventu-
 solucionar por si próprio o caso. tti arunüou-sse     rado lar. Encontrou d; Brazilizia estendida num
desordenadamente em estudos mathematicoe», bio-        divan, a cintura apertadissima, a dividir-lhe o
lógicos, physicos e nietaphysicos. Deu, de um 10-      corpo em duas rotundissimas metades. Contem-
lego, a obra de Blaringüem: " L e s transforma-        piando-a,. Adoasto teve a impressão de ver um
 tions brusques des êtres vivants". A seguir, o        8 deitado, symbolo do infinito mathematico. As-
calculo infinitesímal de Newton e as "Dores do         sustado, tremendo, delirante, sahiu a correu pe-
Mundo", de Schopenhauer. Obras de Spinoza,             las ruas, gritando: "Soccorro! Soccorro! Açu-
Leibnitz, Hartman e, de mistura, um volume ver-        dam! que a minha mulher ficou infinita". Tinha
melho de vulgarização scientifica. Neste ultimo,       perdido irremediavelmente o juizo.
topou com uma afArmação transcendente: "O
que para os antigos physicos, parecia caracteri-         Quanto á d. Brazilizia, chorou duas lagrimas
zar a matéria era a massa, um coefficiente cons-       gordas e esparramou-se de uma vez, afim. de pre-
tante, absoluto. iNâo assim, ante as novas con-        encher piedosamente o vácuo que o marido abri-
quistas da sciencia. A massa, esse ultimo redu-        ra no lar doméstico.
cto da substancia, varia, é uma funcção da velo-
cidade; a matéria não existe: é apenas modalida-                        A. C. COUTO DE BARROS.

k l a x o n
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